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Evangelho: Jo 18,1-19,42

Tema-mensagem: Eis o Homem de todos os homens: Jesus Cristo crucificado


Introdução

Nossas reflexões, para a celebração do mistério de hoje, o maior de todos, vão se ater apenas a três pontos, a nosso ver os mais significativos da Paixão, segundo São João. Mais que explanações, principalmente neste tempo da pandemia do coronavirus, o maior mistério da nossa vida e de toda a humanidade precisa de recolhimento, reflexão e contemplação.

A exemplo da Igreja que, através do celebrante, inicia a celebração deste mistério se prostrando por terra, iniciemos, também nós, com este sentimento de São Francisco:

“Ó Senhor meu Jesus Cristo, duas graças te peço que me faças antes que eu morra: a primeira é que em vida eu sinta na alma e no corpo, quanto for possível, aquela dor que tu, doce Jesus, suportaste na hora da tua acerbíssima Paixão; a segunda é que eu sinta no meu coração, quanto for possível, aquele excessivo amor do qual tu, Filho de Deus, estavas inflamado para de boa vontade suportar tal Paixão por nós pecadores (CCE 3,38).


1. Ecce Homo

Já quase no final da Paixão, depois de ser submetido aos mais atrozes castigos, Jesus é exposto aos olhos de todos como um espetáculo ridículo: um rei cujo diadema é uma coroa de espinhos, cujo manto é um farrapo purpúreo, embebido em sangue. A cena termina com a famosa exclamação de Pilatos: “Idoù ho anthropos” – “Ecce Homo” (“Eis o homem”).

Meditando sobre esta passagem, D. Bonhoeffer diz:

A figura do reconciliador, do Deus-homem Jesus Cristo, se põe ao centro entre Deus e o mundo, entra no meio de todo evento. Nela se desvela o mistério do mundo, assim como nela se desvela o mistério de Deus. Nenhum abismo do mal pode permanecer escondido àquele mediante o qual o mundo é reconciliado com Deus. E o abismo do amor de Deus abraça também a impiedade mais abissal do mundo. Com uma eversão incompreensível de todo modo justo e pio de pensar Deus se declara culpado em relação ao mundo e cancela assim a culpa do mundo. Deus mesmo empreende o caminho humilhante da reconciliação e absolve assim o mundo; ele quer ser culpado da nossa culpa, toma sobre si o castigo e o sofrimento que a culpa nos jogou sobre as nossas costas. Deus responde pela impiedade, o amor pelo ódio, o santo pelo pecador. Agora não existe nenhuma impiedade, nenhum ódio, nenhum pecado que Deus não tenha tomado sobre si, sofrido e expiado. Agora não existe mais nenhuma realidade, nenhum mundo, que não esteja reconciliado e em paz com Deus. Isso, Deus o fez no seu dileto filho Jesus Cristo. Ecce homo!

A fúria dos que recusam Jesus não se aplaca. A acusação muda do plano político – de sedição ou subversão – para o plano religioso – de blasfêmia, pois ele se faz Filho de Deus. A blasfêmia merecia pena de morte (Cf. Lv 24, 16). Diante desta acusação, Pilatos fica assustado. É como se pressentisse que algo de estranho – de extraordinário, inaudito – fora da ordem humana habitual estivesse em jogo: o sacrifício de alguém que se declara Filho de Deus.

2. Junto da Cruz está, de pé, a sua mãe, Maria

“Junto da cruz de Jesus, estavam de pé, a sua mãe, a irmã da sua mãe, Maria de Cléofas e Maria Madalena... e o discípulo que ele amava” (Jo 19,22).

É a Igreja do Amor, que permanece de pé, na Hora de Jesus. A Hora, a que Jesus se referia, ao falar com sua mãe em Caná, chegou (Cf. Jo 2, 4). Nesta hora, Jesus mostra solicitude pela sua mãe. Entrega-a aos cuidados do discípulo predileto. Maria estava à altura da sua dignidade de Mãe de Deus. Também ela, nesta hora, passa de mãe do Filho do Homem para Mãe do Filho de Deus. Como tal ela não podia deixar de estar presente, de pé, junto da Cruz. Ela se conforma ao Crucificado. Por isso, recebe a missão de cuidar do filho predileto de Jesus, João, a Igreja.

No famoso hino Stabat Mater, Frei Jacopone de Toddi, poeta franciscano, pôs em poesia a experiência de compaixão da Virgem-Mãe. Depois dele, vários musicistas compuseram melodias para esta poesia:

De pé, a mãe dolorosa junto da cruz, lacrimosa, via o filho que pendia. [etc.]

3. Tudo está consumado

A última palavra de Jesus na Cruz é: “tudo está consumado” (Jo 19, 30). A entrega, a oferenda de si, estava completa. Ele se doou totalmente. Inclinando a cabeça, entregou o Espírito. João não diz que ele expirou e então inclinou a cabeça. Diz o contrário: ele inclinou reverentemente a cabeça e expirou. Ele tinha o poder de dar a vida e de retomá-la. Na sua morte coincidem a necessidade da vontade do Pai e a soberana liberdade do Filho de se doar, de se entregar, de dar a vida, pela expiação do pecado do mundo. A morte de Cristo na Cruz não é nenhum assassinato, nenhuma tragédia ou fatalidade, nem mesmo um ato heroico, mas um sacrifício no verdadeiro sentido da palavra: uma obra sagrada. É este sacrifício que funda o Reino de Deus sobre a terra. Assim, um novo povo será conquistado para a obediência da fé e para o perfazer da caridade, conforme o Canto do Servo proclamado na primeira leitura (Is 52,13-53.12).

Jesus entregou o Espírito. Podemos interpretar: ele expirou. Mas, também podemos entender que o dom do Espírito – que é o Dom de Deus para todos os homens de todos os povos da terra, aludido no diálogo de Jesus com a Samaritana (Jo 4,10) – emana do Crucificado. Sinais desse dom são a água e o sangue, que irrompem do lado de Cristo. Como Eva, a primeira mãe, surgiu do costado de Adão, do costado do Cristo crucificado e morto nasce a Igreja, a mãe da nova Humanidade.

As pernas de Jesus não foram quebradas. Cumpre-se, assim, nele, o desígnio previsto para o Cordeiro Pascal (Ex. 12, 46), o Cordeiro, o Traspassado (Zc 12, 10) que dá início ao novo Céu e a nova Terra.

No sepultamento, atuam José de Arimatéia e Nicodemos, dois justos entre os judeus, que tendiam a se tornar discípulos de Jesus. O grão de trigo é escondido no seio da terra da qual virá a nova vida, que celebraremos na vigília pascal.

Conclusões

Nosso Doutor evangélico, Santo Antônio que, a exemplo de São Francisco, carregava com muita devoção, a memória da Paixão de seu Senhor, assim se expressa acerca do mistério de hoje: Cristo, que é a tua vida, está suspenso diante de ti para que tu te contemples na cruz como num espelho. Aí poderás conhecer quão mortais são tuas feridas, que nenhuma medicina tem poder de sarar, senão aquela que brota do sangue do Filho de Deus. Se olhares bem, poderás dar-te conta de quão grande são tua dignidade e teu valor... Em nenhum outro lugar o homem pode melhor dar-se conta do quanto ele vale do que olhando-se no espelho da Cruz.

Pode-se e deve-se, ainda, acrescentar que nesse espelho estamos frente a frente, cara a cara, olho no olho, com a mais alta, primeira e última vocação do homem: o máximo de empenho, até a morte e morte de Cruz, para entrar em “comungação” com nossa origem, representada pela haste vertical e em “comungação” com todas as demais criaturas, principalmente os homens, representados pela haste horizontal.

Acerca da importância desta contemplação, ouçamos ainda, o que diz São Leão Magno (sec. V): Quem realmente venera a Paixão do Senhor, deve contemplar de tal modo com os olhos do coração Jesus crucificado, que reconheça na carne do Senhor a sua própria carne. Trema a criatura perante o suplício do seu Redentor, quebrem-se as pedras dos corações infiéis e saiam para fora, vencendo todos os obstáculos (Ofício das Leituras, 5ª feira da 4ª Semana da Quaresma).

Segundo o Vaticano II, toda a atividade humana precisa ser purificada pelo mistério da cruz: Quando a hierarquia de valores é alterada e o bem com o mal são misturados, os homens e os grupos consideram somente seus próprios interesses e não os dos outros. Deixa assim o mundo de ser um lugar de verdadeira fraternidade... Por isso, se alguém quer saber de que maneira se pode superar esta situação miserável, os cristãos professam que todas as atividades humanas, constantemente ameaçadas pela soberba e amor próprio desordenado, devem ser purificadas e levadas à perfeição pela cruz e ressurreição de Cristo (GS, 37).

Por tudo isso, diz nosso Papa Francisco: Quando caminhamos sem a Cruz, edificamos sem a Cruz ou confessamos um Cristo sem Cruz, não somos discípulos do senhor: somos mundanos, somos bispos, padres cardeais, papas, mas não discípulos do Senhor! (GE p. 26).

Mais que em outros dias ou ocasiões, hoje, a exemplo de São Francisco, é o dia rezar e dizer simplesmente assim:


Nós vos adoramos, santíssimo senhor Jesus Cristo,

aqui e em todas as vossas igrejas

que estão no mundo inteiro e vos bendizemos

porque pela vossa santa Cruz remistes o mundo (T 4-5)


Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini

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