Pistas homilético-franciscanas
Leituras: At 2, 42-47; Sl 117 (118); 1Pd 1,3-9; Jo 20, 19-31
Tema-mensagem: No Mistério pascal o sumo da Misericórdia da Santíssima Trindade
Tomé tocando, com seu dedo, a chaga do lado de Cristo, Caravaggio (1571-1610).
Introdução:
Muitos são os aspectos que envolvem e perfazem o Mistério de Cristo. No entanto, tudo e todos convergem para o “Mysterium Paschale” (Mistério Pascal). Ou seja, a paixão, morte e ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo, é o sumo da obra suma de Deus: a encarnação.
Este mistério se reveste de tal grandeza e profundidade que a Igreja para celebrá-lo e meditá-lo, menos indignamente, estende sua celebração até o Pentecostes (quinquagésimo dia). Por isso, fala-se sempre em “Domingos da Páscoa” e não “Domingos depois da Páscoa”.
Hoje, na oitava da Páscoa, primeiro Domingo seguinte ao domingo do Tríduo Pascal, a Igreja, ainda tomada pelo júbilo daquele evento, continua contemplando e celebrando a fonte de todos os mistérios de Cristo: a Misericórdia do Pai. Por isso, é chamado também de “Domingo da Misericórdia”.
1. Igreja uma Comunidade de fé, oração e caridade (At 2,42-47)
A primeira leitura, como de todas as Missas dominicais do Tempo pascal, é dos Atos dos Apóstolos, cujo protagonista não é nem Pedro, nem Paulo muito menos os Apóstolos, mas o Espírito Santo, isto é, o agir o atuar do espírito do Senhor Ressuscitado na primitiva comunidade cristã de Jerusalém, modelo e protótipo para toda a Igreja.
Nesta pequeno resumo encontramos os três atos que fundamentam e dão sustento a toda e qualquer comunidade cristã, assim apresentados: Os que haviam se convertido eram perseverantes em ouvir o ensinamento dos Apóstolos, na comunhão fraterna, na fração do pão e nas orações (At 2,42).
A comunidade, a Igreja, tem seu início com o vigor da fé que nasce da graça do encontro com Jesus Cristo ressuscitado, que acontece através do ensinamento, dos prodígios e sinais que os Apóstolos realizavam. Da graça deste encontro com Cristo, nasce uma comunhão fraterna tão forte que leva os fiéis a viverem unidos e a colocarem tudo em comum. Finalmente, como coroamento de toda esta ação do Espírito brota a necessidade de todos se reunirem para o louvor a Deus e a celebração da fracção do pão, a eucaristia. Por isso, cada dia, o Senhor acrescentava ao seu número mais pessoas que seriam salvas (At 2,47).
2. Misericórdia: o sumo da Santíssima Trindade (1Pd 1,3-9)
Ao contrário do que usualmente pensamos, mistério não é o que não compreendemos, mas o que nos com-preende, abraça, ama e cuida. É como na maternidade. Ao conceber o filho, não é apenas a mãe que vai compreendendo a maternidade, mas, também e principalmente, esta é que vai com-preendendo, cuidando, orientando e fazendo a mãe tornar-se mãe. Neste sentido, Mistério é a fonte de onde nascem todas as criaturas, a raiz que as sustenta e a casa (céu) que as acolhe. Por isso, Mistério é a unidade dos contrários: é o que se diz e se silencia, se des-vela e se re-vela, se dá e se subtrai, se manifesta e se retrai em tudo e em todos. A nós, cristãos, foi revelado que este mistério não é outro senão o atuar, o operar da Trindade santa: Pai-Filho-Espírito Santo. E quem nos revelou em plenitude este mistério foi Jesus Cristo, principalmente em seu “Mistério pascal”.
2.1.Misericórdia uma reconquista da Igreja do Vaticano II
No missa de hoje, este mistério vem muito bem proclamado através da carta de São Pedro: “Bendito seja Deus, o pai de nosso Senhor Jesus Cristo. Em sua grande misericórdia, pela ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos, ele nos fez nascer de novo, para uma esperança viva, para uma herança incorruptível que não mancha e nem murcha...”
Hoje, a compreensão de Deus como misericórdia é uma das últimas e mais belas re-conquistas da Igreja do Vaticano II. Já na abertura daquele evento, em 1962, o franciscano São João XXIII indicou-a como senda a ser seguida: “Nos nossos dias, a esposa de Cristo prefere usar mais o remédio da misericórdia do que o da severidade” (MV 4).
A retomada desta Boa Nova veio alcançando cada vez mais destaque e atenção. João Paulo II, em 1980, em sua encíclica “Dives in misericórdia” (Rico em misericórdia), depois de lamentar que o tema da misericórdia havia caído no esquecimento, proclama que a misericórdia é o mais admirável atributo do Criador e do Redentor (Cf. MV 11). E mais recentemente, o Papa Francisco, além de proclamar que “paciente e misericordioso” é o binômio que aparece frequentemente no Antigo Testamento para descrever a natureza de Deus (MV 6), acentua que “Misericórdia é a palavra que revela o mistério da Santíssima Trindade. Misericórdia é o ato último e supremo pelo qual Deus vem ao nosso encontro. Misericórdia é a lei fundamental que mora no coração de cada pessoa, quando vê com olhos sinceros o irmão que encontra no caminho da vida. Misericórdia é o caminho que une Deus e o homem, porque nos abre o coração à esperança de sermos amados para sempre, apesar da limitação do nosso pecado” (MV 2).
Podemos até afirmar que a misericórdia é mais que o principal atributo de Deus. É sua própria essência. Parafraseando São João, segundo o qual Deus é Amor, podemos dizer que Deus é Misericórdia ou, melhor ainda, que a Misericórdia é o próprio Deus. Por isso, também, para revelar-se, Ele não tem outra senda, senão a da Misericórdia, pois a realidade em que ele se encarna vem marcada pela miséria, isto é, pela fragilidade, pelo mal, pelo pecado. Assim, o que foi a encarnação (pasmem o Céu e a Terra!) senão a sagrada aliança, o sagrado casamento da misericórdia com a miséria? Por isso, o programa messiânico de Cristo não teve outra vértebra senão a misericórdia (Papa João Paulo II em Dives in Misericordia, 7). Consequentemente, diz o Papa Francisco: “A arquitrave que suporta a vida da Igreja é a misericórdia... A credibilidade da Igreja passa pela estrada do amor misericordioso e compassivo” (MV 10).
Assim, pelo mistério pascal podemos não apenas compreender, mas acima de tudo, ser compreendidos pelo mistério mais profundo da existência de todas as criaturas e de toda a história da humanidade; por ele somos reconduzidos à mesa do sagrado convívio da Santíssima Trindade onde podemos provar do prato mais servido e degustado pelos membros desta Família divina: a compaixão mútua.
2.2. Um admirável testemunho
Na história da Igreja quem compreendeu e se deixou prender por este mistério, além da pecadora Madalena, dos Apóstolos e outros, foi São Francisco. Ninguém, como ele, desejou e sentiu a dor e o amor da paixão de seu amado Jesus; paixão que foi, em suma, compaixão pela humanidade decaída na miséria, e pela criação, submetida à vaidade, ao poder aniquilador do nada do pecado e da morte. Por isso, para associar-se a este mistério, ele rezava diariamente o ofício da Paixão, saía, muitas vezes, a chorar pelas florestas e se alguém, encontrando-o, lhe perguntava por que ele chorava, sua resposta era simples e essencial: “por que devemos amar muito aquele que muito nos amou” (2C 196). Foi por amar este amor e por querer se identificar com ele cada vez mais que percorreu um caminho semelhante ao de Cristo. Também ele sentiu o desejo de subir o monte Alverne a fim de receber os sagrados estigmas da Paixão do seu Senhor. Assim, as chagas do Cristo da fé, que são as mesmas chagas do Jesus histórico, se gravaram no seu coração e no seu próprio corpo, levando o Papa Pio XI a proclamá-lo “um Outro Cristo”, “um Cristo redivivo”.
3. O amor misericordioso é mais forte do que o pecado e a morte (Jo 20,19-31)
Mais que em outros tempos, o tempo da Páscoa nos revela como a partir da Ressurreição o mistério da misericórdia começa a se expandir e a tomar conta do coração das pessoas, a começar pelos apóstolos. Neste domingo, a Igreja celebra esta maravilha através do conhecido Evangelho de Tomé, o Dídimo.
3.1. O mistério da misericórdia veio para ficar
O Evangelho de hoje nos leva para dentro do coração dos apóstolos no “anoitecer daquele dia, o primeiro da semana”: por medo dos judeus estavam fechados e trancados dentro de casa. O motivo é muito claro e lógico: se fizeram tudo aquilo com o mestre, com certeza, aos poucos fariam o mesmo com eles, seus seguidores. Além do medo, havia também o desânimo, a frustração, a desorientação pois de tudo o que esperavam não apenas nada aconteceu, mas, o que foi bem pior, saiu pelo contrário. Eles que esperavam ansiosamente a nomeação para altos postos viram o seu mestre, senhor e rei, ser condenado e executado à vergonhosa e ignominiosa morte de Cruz. Só um raio de luz, de improviso, tinha raiado nas trevas daquele dia: o anúncio de Maria Madalena. Segundo ela o sepulcro estava vazio e o Senhor lhe teria aparecido. Mas tudo isto era tão improvável e incrível, tão inusitado, que não dava para acreditar.
No entanto, no meio de tanta incredulidade e abatimento, o inesperado, o inusitado, acontece, originariamente, e como um novo princípio: a força do mistério pascal acaba com todas as portas fechadas. Jesus veio e se pôs no meio deles. Ele viera cumprir sua promessa: “não vos deixarei órfãos, eu virei a vós. Ainda um pouco e o mundo não me verá mais; vós, porém, me vereis vivo, e também vós vivereis” (Jo 14, 18-19). Naquele seu famoso discurso, Jesus fala que tudo isso acontecerá num dia bem concreto e determinado: “Naquele dia, conhecereis que eu estou no Pai e que vós estais em mim e eu em vós” (Jo 14, 20). Para João, “aquele dia”, significa o último dia, dia que começa com a Ressurreição de Cristo e vai até o fim dos tempos; dia que é re-petido (pedido de novo) a cada primeiro dia da semana, o Domingo, o “Dia do Senhor”, o “Dia eterno ”, o “Dia de todos os dias”.
Assim, pondo-se no meio deles como o fizera tantas vezes, os saúda: “A paz esteja convosco”. É como se lhes dissesse: não fiquem atordoados, alarmados, desesperados; que cessem as dúvidas, os temores e os medos em vossos espíritos. E, para confirmar que era Ele mesmo, o Crucificado, e que a Cruz em vez de desgraça era uma graça, que Ele estava bem, salvo e em paz, mostra-lhes “as mãos e o lado”. Isto é: este que lhes fala é o mesmo que por eles se deixou crucificar, aquele cujas mãos e pés foram trespassados pelos cravos, aquele cujo lado foi aberto pela lança. O Ressuscitado é o Crucificado mesmo, em “carne e osso”. É o Filho de Deus encarnado, a misericórdia encarnada. Ele está vivo! É o homem. Por que temer? Vale a pena ler e meditar esta reflexão:
Ecce homo – olhai o homem tomado por Deus, julgado por Deus, por Deus despertado a nova vida, olhai o Ressuscitado! O sim de Deus ao homem adveio à sua consumação através do juízo e da morte. O amor de Deus pelo homem foi mais forte do que a morte. Um homem novo, uma nova vida, uma nova criatura foi criada pelo milagre de Deus. ‘A vida trouxe a vitória, derrotou a morte’. O amor de Deus se tornou a morte da morte e a vida do homem. Em Jesus Cristo encarnado, crucificado e ressuscitado a humanidade se tornou nova. O que aconteceu a Cristo aconteceu a todos, porque ele era o homem. O homem novo foi criado (D. Bonhoeffer).
Os discípulos olham para ele e o veem. Mas a fé deles vacila diante do que veem. Por isso, Ele lhes mostra as mãos transpassadas pelos cravos, e a pleura, transpassada pela lança. O corpo do Cristo ressuscitado conserva as feridas da Cruz. Por que? Agostinho responde: elas foram conservadas para curar os corações dos que duvidavam. Só então eles se alegraram por verem o seu Senhor ressuscitado.
3.2. Com a misericórdia, a Paz e a missão
Jesus, então, pela segunda vez, insiste: “A paz esteja convosco”. Era necessário repetir para confirmar o que estavam vendo e assim pudessem crer no que estava acontecendo. Ou seja, assim como Ele estava na paz no meio dos opróbrios da cruz, eles também em suas perseguições e tribulações seriam envoltos pela graça do mesmo mistério: a misericordiosa acolhida do Pai. Era preciso que crescem que Ele, em vez de abandonado, fora salvo, acolhido pelo Pai. Por isso, a paz que nasce deste reencontro Dele com o Pai - em vez da fragilidade da paz estabelecida pelos homens e pelo mundo - é duradoura, eterna e para todos, universal. É esta paz que agora Ele veio trazer-lhes. Uma paz que nasce da alegria e da experiência de Ele poder estar de volta e de novo no meio deles; uma presença nova, inaudita, imperecível. Com Ele em seu meio podiam e deviam confiar, ter fé, sentir-se em casa, seguros e pacíficos. A exemplo de uma criança, em casa, no colo do pai ou da mãe, como ou porque sentir medo dos raios e tempestades?
À confirmação da paz, segue a confirmação da vocação e de missão apostólica: “Como o Pai me enviou, assim também eu vos envio”. Ele cumprira a sua missão. Agora chegara a vez deles. Se até então fora o tempo Dele, agora estava se iniciando o tempo e a missão deles, da Igreja. A presença Dele com as gloriosas chagas é um sinal claro de que o caminho de todos os seus seguidores não será outro senão o da santa cruz; que também eles deverão segui-Lo no meio de tribulações, ódios e perseguições; que também eles, animados pela mesma fé Dele no Pai, saberão ou aprenderão a ser portadores e instrumentos da Paz: “Senhor, fazei-me instrumento de tua paz...”,
Foi por isso e para isso que “soprou sobre eles e lhes disse: ‘Recebei o Espírito Santo. A quem perdoardes os pecados, ser-lhes-ão perdoados. A quem os retiverdes, ser-lhes-ão retidos”. Trata-se, aqui, do Espírito Santo que foi liberado da Cruz, na hora de seu último respiro, para ser infundido sobre a Igreja. Agora, o Crucificado, ressuscitado, sopra este mesmo Espírito sobre os seus Apóstolos (cfr. Jo 20, 22), para que eles comuniquem o sopro da misericórdia divina a todos os homens, cuja expressão máxima é a remissão dos pecados em toda a terra. Através da Igreja, enquanto sacramento da misericórdia divina na terra, deve chegar a todos os homens de todos os povos a água, o sangue, o Espírito, que vêm de Cristo e pelos quais o Cristo vem aos homens (cfr. 1 Jo 5, 5-12).
Entretanto, Deus não arromba portas. Ele está à porta e bate. Não constrange a liberdade humana. Espera que ela se abra, para amar o amor que a ela se propõe desde a cruz. Por isso, a misericórdia de Deus pode ser rejeitada pelo homem. E o homem pode decidir – não abrindo a porta de seu coração – ficar de fora da festa da misericórdia e, assim, danar-se (danificar-se) e condenar-se a si mesmo. Mas, o mais importante é que Cristo misericordioso, desde a Eucaristia celebrada pela Igreja, que é chamada a ser, como Maria, Mãe de misericórdia (e não juíza inclemente) diz a todos, a cada um dos que são convidados para a ceia do Senhor, para o banquete da misericórdia: «Eis que estou à porta e bato. Se alguém ouvir a minha voz e me abrir, entrarei em sua casa e cearemos juntos, eu com ele e ele comigo» (Ap. 3, 20).
3.3. Tomé o Dídimo
A segunda parte do Evangelho, com o famoso episódio de Tomás ou Tomé, chamado de “Dídimo”, tem um objetivo muito claro e específico: ajudar aos que não viram o Cristo ressuscitado a aderir ao testemunho dos que o viram. “Dídimo” significa “duplo”. E “duplo” aqui pode ter uma dupla interpretação. Duplo pela dúvida, que é sinal de incredulidade, isto é, de infidelidade; e “duplo” pela fé, isto é, pelo seguimento de Cristo. Tomé fora duplo pela dúvida. Pois dúvida é divisão do coração. O contrário da dúvida, aqui, não é a certeza. É, antes, a simplicidade, isto é, a unidade do coração. Ou seja, Tomé, primeiramente, tomado pela dúvida e pelo medo era um discípulo dividido em seu coração. Mas, num segundo momento, e isto é o que mais importa, pela fé, Tomé, recuperando sua unidade interior em seu Mestre e Senhor, a exemplo de São Francisco, se tornou um duplo de Cristo, algo assim como um “gêmeo” de Cristo, igual a Ele. Ou seja, pelo seguimento Dele, se fez conforme a Ele, até o martírio (segundo uma tradição, Tomé foi martirizado por Cristo em Malabar, na Índia). Assim também todo o discípulo de Jesus é chamado a ser “Gêmeo” dele, isto é, alguém que se con-forme a Ele, da mesma forma, da mesma fisionomia ou do mesmo aspecto, do mesmo modo de ser.
Tomé é um belo exemplo do processo da fé. Ele queria acreditar, mas não podia. O que seus companheiros narravam era extraordinário demais, inusitado demais, inesperado demais, para que ele aderisse com todo o seu ser, com todo o seu coração. Por isso dizia: “Se eu não vir em suas mãos a marca dos cravos, se eu não enfiar o meu dedo no lugar dos cravos e não enfiar a minha mão no seu lado, não acreditarei! ” Neste sentido ele é autêntico. Não basta crer no que os outros dizem à maneira de “Maria vai com as outras”. É preciso crer sofrendo a busca por sua própria experiência.
Foi o que então, aconteceu. Oito dias depois, Jesus aparece de novo no meio dos Onze, novamente os saúda desejando-lhes a paz, e, então, faz o convite a Tomé: “Aproxima o teu dedo aqui e olha as minhas mãos”. A ele seria dada a graça de não somente reconhecer o Senhor, isto é, o homem Jesus que ele seguira desde a Galileia, mas também de penetrar na profundidade do abismo do coração do próprio Deus. Ao enfiar a sua mão na pleura de Cristo, aberta pela lança, pôde ver, sentir e provar quão profunda e próxima é sua misericórdia.
Os Padres da Igreja se alegram com a ausência e com a dúvida de Tomé. São Gregório Magno diz algo assim: quando o discípulo incrédulo (leia-se: infiel) apalpava as feridas do Mestre, eram curadas em nós as feridas de nossa própria incredulidade (leia-se: de nossa própria infidelidade). A incredulidade é sempre uma cegueira. Não somos capazes de ver o invisível do visível. No caso de Tomé, e de cada um de nós, ela sempre impede que vejamos a imensidade do amor misericordioso de Cristo. Mas, Cristo não se deixa vencer por esta cegueira de seu amado discípulo. Por isso, permite-lhe um gesto de profunda intimidade: “Vem, Tomé, põe o teu dedo aqui e olha as minhas mãos. Estende a tua mão e coloca-a no meu lado. E não sejas incrédulo, mas fiel”. Poderia haver gesto mais condescendente e misericordioso do que este!?
Tudo isso, para no nosso bem, diz o mesmo Gregório Magno, pois a incredulidade de Tomé foi mais proveitosa a nós do que a credulidade de todos os outros discípulos juntos. Pois a sua incredulidade se tornou a ocasião para depor a nossa dúvida, isto é, a nossa divisão de alma no seguimento de Cristo, para confirmar o nosso espírito no amor uno do Mestre. Tanto a Tomé como a nós o Senhor faz questão de exibir suas feridas para que vejamos que tanto elas como sua cruz em vez de vergonha ou deformidades, segundo Agostinho, são marcas da dignidade do combatente, que, aparentemente foi derrotado, mas cuja derrota transmutou-se em vitória, pois sua morte tornou-se a morte da morte (a negação da negação).
Ao ver e tocar o Senhor, Tomé conclui agora seu seguimento, que iniciara na Galileia, com este ato de fé: “Meu Senhor e meu Deus”. O alcance deste atokk, porém ultrapassa todos os limites de espaço e de tempo. Pois, logo em seguida, o Senhor mesmo acrescenta: “Porque me viste, creste; bem-aventurados os que não viram e, contudo, creram”. Gregório Magno, com alegria, diz que nós estávamos compreendidos nesta bem-aventurança. Esta bem-aventurança nos pertence! Não pertence aos Apóstolos! Nós somos, pela fé, os que não viram e creram. Não vimos pela carne, mas vemos pela fé. Agostinho, por sua vez, nota que Cristo fala no pretérito, mas se refere ao futuro. Ou seja, por mais incrível que pareça, a maior bem-aventurança do seguimento de Cristo, é oferecida mais a nós que cremos sem termos visto do que aos apóstolos que puderam vê-lo em seu corpo com suas santas chagas.
Este mesmo objetivo vem assinalado pela última exortação de Jesus neste evangelho: crer, aceitar, acolher que Ele é o Cristo, o Filho de Deus, para que assim, crendo, tenhamos a vida eterna em seu nome.
Conclusão
O Papa Francisco, ao anunciar o último Jubileu extraordinário da Igreja, exortou os fiéis a retomar o tema da misericórdia como o princípio básico da renovação que a Igreja se propôs a partir do Vaticano II. E, mais adiante, perguntado porque insistia neste tema, respondeu: “É porque a humanidade de hoje é uma humanidade ferida, uma humanidade que possui feridas profundas” (O Nome de Deus é misericórdia, pág. 45).
São Francisco no fim da vida, ao testemunhar como ou porque chegara a tão admirável conversão e identificação com Cristo, respondeu que foi o próprio Senhor quem fizera isto; que foi Ele quem o conduzira para o meio dos leprosos a fim de poder fazer misericórdia com eles. E assim o que antes lhe parecia amargo se tornou em doçura da alma e do corpo.
Fazer misericórdia, porém, para Francisco, não era fazer uma mera assistência social, mas, acima de tudo, deixar-se envolver, cuidar, orientar e conduzir pelo mistério da misericórdia divina, Jesus Cristo pobre e crucificado, tão bem visível e atuante nos leprosos de todos os tempos e de todos os tipos.
Fraternalmente,
Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini, ofm
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