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30º Domingo do Tempo Comum - Ano A

Leituras: Ex 22,20-26; Sl 17(18); 1Ts 1,5c-10; Mt 22,34-40


Tema-mensagem: Viver na unidade da caridade, que se opera no duplo amor: de Deus e do próximo.

Sentimento: Alegria e gratidão por podermos comungar do amor de Deus e do próximo



Introdução

Depois das controvérsias sobre o tributo a César (Cf. Mt 22,15-22) e sobre a ressurreição dos mortos (Cf. Mt 22,23-33), chega a hora de Jesus ter de enfrentar as controvérsia sobre o maior mandamento da Lei (Cf. Mt 22,34-40). No contexto do Evangelho de hoje, estão os debates dos dirigentes religiosos judaicos, sacerdotes e escribas, intérpretes da Lei, com Jesus. Seu objetivo é poder pegá-lo e entregá-lo à autoridade romana para, assim, ter um motivo para condená-lo à morte.

1. Dos fariseus e de seu fanatismo pelas leis e tradições (Mt 22,34-40)

Quem no Evangelho de hoje toma a iniciativa da provocação são os fariseus: “Os fariseus, ouvindo falar que ele emudecera os saduceus, reuniram-se contra ele. E um deles, especialista na Lei, propôs-lhe uma questão para pô-lo à prova” (Mt 22,34-35).


1.1. Da Religião de Deus para a religião do “eu”

Os fariseus, diferentemente dos saduceus e sacerdotes, que primavam mais pelos rituais do Templo, davam destaque à Lei, à Torah e a seus requerimentos em vista do povo comum. Desde sua obscura origem, no século I a.C., eles estão em tensão com os sacerdotes mais graduados e seu partido, o dos saduceus. O farisaísmo, tal como o conhecemos a partir da polêmica cristã, que aparece nos evangelhos, é uma decadência do modo de ser e de viver do fariseu originário. O que predomina neles é o legalismo, o rigorismo, que distancia o homem de Deus. E, acima de tudo, faz preferir sua autenticidade e santidade, à santidade de Deus; faz preferir a justiça própria à justiça de Deus, que é amor e misericórdia. É o fanatismo ético dos que se consideram a si mesmos como “justos”; é o fundamentalismo religioso dos que procuram se distinguir dos demais homens como os “pios”, os “puros”, os “separados”. Em vez de seguir a religião de Deus seguiam a religião do “Eu”, diz nosso Papa. Acerca deste fanatismo escreve Bonhoeffer:

O fanático crê ser capaz de opor-se ao poder do mal com a pureza da sua vontade e do seu princípio. Mas o fanatismo, dado que por sua natureza perde de vista a totalidade do mal e se lança como o touro contra o pano vermelho, antes que contra quem o segura, acaba por se enfraquecer e sucumbir. O fanático fariseu erra o alvo. O seu fanatismo, mesmo pondo-se a serviço dos outros bens da verdade ou da justiça, se perde antes ou depois no inessencial, nas pequenas coisas, e cai na rede do mais astuto adversário (Bonhoeffer, D. Ética, p. 56).

O fariseu, nos evangelhos, é o oposto de Jesus. Fariseu, ali, é todo o homem, enquanto todo o homem vive da consciência do bem e do mal. É o homem dividido, de duas almas (dipsychos). É o homem admirável que subordina tudo à consciência do bem e do mal, que julga severamente não só o outro, mas também a si mesmo, para honrar a Deus. São estes homens do conflito ético de ontem e de hoje que se voltam contra Jesus e sua Boa Nova, o reino dos Céus, a vontade do Pai que quer a misericórdia e não o sacrifício.

1.2. Dois mandamentos num só

Pois bem, este fariseu indaga a Jesus: “Mestre, qual é o grande mandamento da Lei?” (Mt 22,36). A hipocrisia é patente: por que chama Jesus de Mestre se não põe fé em suas obras, muito menos em sua pessoa? Por que quer prová-lo? E qual seria a prova? Não o sabemos bem. Talvez fosse apenas para desqualificá-lo como mestre perante o público, pois como estaria ele em condições de responder a tão importante questão se já por diversas vezes parecia não apenas não se importar com a lei, mas até de ser um dos seus transgressores? Enfim, como o público podia ir atrás de um mestre que pouco ou nada entendia da Lei? De fato, este era um dos pontos altos de um bom religioso judeu: conhecer e observar item por item a Torah com seus 613 preceitos dos quais 365 eram proibições e 248 ações. Por isso, a pergunta do legista vai na direção da escolha de um dos mandamentos como sendo “o grande”, o “primeiro”.

A resposta de Jesus soa clara e certeira: “‘Amarás o Senhor teu Deus de todo o coração, com toda a tua alma e com toda a tua mente’. Eis o grande, o primeiro mandamento. Um segundo é igualmente importante: ‘Amarás o teu próximo como a ti mesmo’. Desses dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas” (Mt 22,37-40). Jesus apresenta, pois, o duplo amor a Deus e ao próximo como sendo o resumo - o sumo, o ápice, o máximo, a fonte e o cume - da Lei e dos Profetas: revelação divina do Antigo Testamento.

A resposta de Jesus não era nova, pois estava bem em consonância com Dt 6,5 no que diz respeito ao amor a Deus e com Lv 19,18 no que diz respeito ao amor ao próximo. Também sua unidade já havia sido aceita em Israel desde o Rabi Hillel (60 a.C – 6 d.C.). A novidade está, primeiramente, em insistir que deles “dependem” toda a Lei e os Profetas. Ou seja, sem eles, a exemplo da árvore, sem a raiz, a Lei e os Profetas inexistem. E em segundo lugar, a necessidade de conservá-los unidos e não apenas no nível de ensinamento acadêmico, mas também e principalmente, como princípio elementar, básico, fundamental da formação religiosa pessoal bem como da construção de toda a comunidade religiosa e civil. Assim, a originalidade da resposta está em apontar e convocar para a sua “originariedade” (vigor da origem). Ou seja, fugindo de problematização, e conflito proposto, Jesus procura reconduzir o legista à simplicidade originária da unidade do duplo mandamento do amor: Deus e, ao mesmo tempo, o próximo.

A exemplo do sujeito que por estar tão fascinado pelas árvores não consegue ver a floresta os fariseus, presos às inúmeras leis, preceitos e proibições não conseguiam mais ver, seguir e admirar o princípio supremo, a raiz que as unia e justificava: Deus e os próximos. Ora, quando isso acontece, isto é, quando o homem vive sem um princípio unificador perde sua unidade e vive fraccionado em mil e um compartimentos estanques dos quais tem que prestar contas através de uma consciência cada vez mais atormentada. Com uma divisão em tantos fragmentos insignificantes a vida vai se autodestruindo, uma vez que o homem, jamais poderá cultivá-la a contento. Era o que estava acontecendo no tempo de Jesus e (como não?), muitas vezes, hoje e sempre.

O amor a Deus e o amor ao próximo como a si mesmo são um único imperativo: “amarás”, que deve se desdobrar no dia a dia, nas grandes e pequenas coisas, com tudo e com todos. Na verdade, como disse São Jerônimo, tudo o que Deus ordena – até mesmo o simples abrir ou o fechar de uma porta - é grande. E tudo o que ele ordena se resume na grandeza – na magnanimidade do amor. O Pseudo-Crisóstomo observa: Deus manda amar. Não exige o temor. Mas requer o amor.

Amarás, disse, e não temerás, porque amar é mais que temer; temer é próprio dos servos, e amar é próprio dos filhos. [...] O Senhor não quer que os homens O temam de um modo servil, e como a um amo, mas que se O ame como pai, uma vez que concedeu aos homens o Espírito da adoção.

Um traço essencial deste amor é a gratuidade: não um amor que ama por dívida, como resposta a um mérito, mas que ama por própria iniciativa, livremente, gratuitamente, de modo superabundante (perisson, diz o Sermão da Montanha – Mt 5,46ss). Por isso, o amor ao próximo se alarga universalmente para incluir o amor ao inimigo. Trata-se, porém, de um amor universal concreto. Isto é, a universalidade do amor não se degenera numa generalidade esquemática. Por isso, o latim em vez de amar usa o verbo “diligere” e o grego “agapáo”. “Diligere” e “agapáo” significa amar com diligência, com doação até com o sacrifício da própria vida, se for o caso, como muito bem aparece com Cristo, principalmente na Última Ceia e na Cruz.

1.3. Amar a si mesmo

Além de amar a Deus e ao próximo, o grande mandamento ordena também que cada um ame a si mesmo. Amar a si mesmo parece tarefa fácil e agradável porque, à primeira vista, poderíamos pensar que esse mandamento estivesse nos convocando para dar vazão ao egoísmo: cuidar tão somente dos interesses e gostos próprios e subjetivos, particulares ou grupais e que São Paulo chama de “eu carnal”. O “eu” do homem é sempre e cada vez constituído numa forma de existência. O homem pode constituir o seu eu de modo “carnal” (egoísta) ou de modo “espiritual” (no sentido do si-mesmo pneumático). O eu da carne, porém não é o verdadeiro “eu” do homem porque, voltado unicamente para seus interesses egocêntricos, na maioria das vezes superficiais, não permite ao homem mergulhar mais para o profundo e íntimo do seu “si-mesmo” de onde ele pode constituir o outro e verdadeiro “Eu”, o “Eu” espiritual, voltado para os grandes e eternos valores, como, por exemplo: Deus, o perdão, a misericórdia, a Paz e o Bem e, acima de tudo, a vocação de ser e fazer-se imagem e semelhança de seu Deus, Pai e Criador (Cf. Rm 7,14-26). Amar a si mesmo significa, pois aprender a olhar para si como Deus o vê, o quer e o ama. Feliz o homem que vem a ser o que ele era em Deus, antes de ele existir, isto é, aquele homem que realiza aquele Eu que Deus concebeu para ele no intuito da criação, antes mesmo desse homem existir no tempo.


1.4. Amar de todo coração de toda a alma e de todos o entendimento

Ao instituir e organizar seu Povo, Jahvé não apenas lhe confia o mandamento do amor, mas, também, o modo como deve ser observado: de todo o coração, de toda a alma e de todo a mente. São Boaventura, para explicar este modo de amar usa o exemplo do amor da esposa e o explica citando São João Crisóstimo: “Amar o Senhor de todo o coração significa não teres o coração inclinado ao amor de coisa alguma mais do que de Deus, não te deleitares na figura deste mundo nem nas honras nem nos pais, mais do que em Deus”.

Amar assim, significa, a exemplo do nosso coração corpóreo, inteiramente vazio de si mesmo, servir e acolher sem rachas, sem divisões, a todo o instante, sem parar, todas as criaturas e o Senhor Deus como nosso “único bem, o bem inteiro, o bem universal” (São Francisco).

“De toda a alma” segundo santo Agostinho, “consiste em amá-lo de toda a vontade, excluindo qualquer coisa em contrário; é fazer não o que queres nem o que aconselha o mundo nem o que sugere a carne, mas o que sabes querer o Senhor, teu Deus. Seguramente amas a Deus de toda alma, quando por amor de Jesus Cristo expõe de bom grado à morte, se necessário, a tua vida”. Quem ama assim jamais desanimará, jamais se frustrará ou se fragilizará. Pelo contrário, os desafios, a exemplo do senhor na cruz, tornam-se seu alento, coragem, vigor e as dificuldades suas grandes mestras.

Finalmente, ainda, “de todo entendimento” ou “de toda a mente”, segundo Santo Agostinho, significa “amar de toda a memória, sem esquecimento” (Cf. “De Perfectione Vitae, São Boaventura). Quem ama assim, se aproximará da raiz e do princípio de cada criatura ou acontecimentos uma vez que todas e todos nascemos e vivemos a partir do mesmo princípio (Cf. 2ª leitura do Ofício das Leituras da festa da Bem-aventurada Angelina de Montegiove, 13 de julho).


2. Amar no amor que é Deus: pedra fundamental para a constituição do novo Povo de Deus (Ex 22,20-26)

Quem nos fala bem direta e concretamente desta dimensão universal do amor a Deus e ao próximo é a primeira leitura de hoje, tirada do livro do Êxodo; uma exortação que nos abre os olhos e o coração frente aos desdobramentos sociais, eclesiais e cotidianos da justiça do amor, que é misericórdia. Os comandos de Deus são a expressão de seu bem-querer pelo seu povo. É por amar o seu povo que Ele dá as coordenadas do seu caminhar, para que este povo possa encontrar a terra boa e a vida plena e, assim, ser feliz: “Não oprimas nem maltrates o estrangeiro... Não faças mal à viúva nem ao órfão...” (Ex 22,20-21).

Quem, 1200 anos depois, compreendeu e concretizou este mandamento, de modo admirável, foi São Francisco com suas três Ordens, principalmente com a Terceira, composta só de leigos ou seculares. Quando estes, a fim de poder segui-lo e imitá-lo na reconstrução da Igreja e do mundo, vivendo no mundo e com as coisas do mundo, lhe pediram uma regra, ordenou-lhes o mesmo que Cristo ordena no Evangelho de hoje, acrescentando: “oh, quão felizes serão vocês se fizerem isto até o fim. Pois, então, sobre vocês repousará o Espírito do Senhor e vocês serão filhos do Pai celestial, esposos, irmãos e mães de Nosso Senhor Jesus Cristo” (Cf. ROFS). Foi observando e seguindo este mandamento que aqueles seguidores de São Francisco proporcionaram o surgimento de uma sociedade mais fraterna e justa, isto é, menos elitista e menos dividida entre “maiores” e menores”; uma sociedade desarmada (sem armas) e sem as beligerâncias e os intermináveis conflitos e guerras entre os castelos e seus príncipes.


3. O querigma cristão e sua eficácia

Na segunda leitura, tirada da primeira Carta aos Tessalonicenses, Paulo começa mostrando aos fiéis de Tessalônica o vigor de sua pregação: De fato, o Evangelho que pregamos não foi apresentado somente com palavras, mas com poder, com o Espírito Santo e com plena convicção (1Ts 1,5). A partir do vigor deste anúncio, surgem as maravilhas, entre elas o nascimento de uma comunidade fervorosa, composta de fiéis imitadores de Paulo e do Senhor; uma comunidade que, apesar das tribulações ou, justamente por causa delas, acolheu a Palavra com a alegria do Espírito Santo. Tomada por este entusiasmo ela, a Comunidade, se tornou testemunho de conversão para Cristo e seu Evangelho bem como de abandono dos falsos deuses a fim de servir ao Deus vivo e verdadeiro.

Temos aqui um dos princípios básicos da evangelização cristã: a fé da e na Comunidade. O “querigma” tem um conteúdo inevitavelmente social, comunitário, uma vez que em seu coração está o mandamento do amor, como vimos no Evangelho de hoje, amor cuja fonte não é outra senão o mistério da SS. Trindade. Por isso, com alegria, Paulo proclama: Com efeito, a parir de vós, a Palavra do Senhor se divulgou não apenas na Macedônia e na Acaia, mas a vossa fé em Deus se propagou por toda parte. Assim, nós nem precisamos de falar... (1Ts 1,8).

Hoje e sempre encontramos dificuldade de entender o princípio de que toda a evangelização nasce do “nós” e não do “eu”. De nós porque ela é acima de tudo obra do Espírito do Senhor e não do testemunho das individualidades, por mais perfeitas que possam ser.

Fazendo eco a este princípio, também São Francisco, mais tarde, prioriza a evangelização através da comunidade. Por isso, cheio do Espírito Santo, chamando a si os ditos seis Irmãos, envia-os pelo mundo a fim de testemunharem o Evangelho mais pelo testemunho da caridade e da misericórdia do que pelas palavras (LTC 36).


Conclusão

Mas, por que o amor é tão importante a ponto de Jesus proclamá-lo como o primeiro de todos os mandamentos? A razão é muito simples: porque Deus, o princípio, a origem, a fonte de tudo e de todos é Amor. Por isso, também suas criaturas carregam como sua marca mais profunda a de serem “amores” do Amor e, por conseguinte, como tais, com a necessidade interior de amar ou servir como Ele ama e serve. Por isso, não pode ninguém, jamais, viver numa atitude de indiferença, alheio às demais criaturas tanto humanas como cósmicas.

Daí essa magnífica conclusão do Papa Francisco: Por conseguinte, ninguém pode exigir-nos que releguemos a religião para a intimidade secreta das pessoas, sem qualquer influência na vida social e nacional, sem nos preocupar com a saúde das instituições da sociedade civil, sem nos pronunciar sobre os acontecimentos que interessam aos cidadãos (EG 183).

E, para consolidar sua exortação o Papa faz questão de evocar dois significativos exemplos: Quem ousaria encerrar num templo e silenciar a mensagem de São Francisco de Assis e da Beata Teresa de Calcutá? Eles não o poderiam aceitar. Uma fé autêntica – que nunca é cômoda nem individualista – comporta sempre um profundo desejo de mudar o mundo, transmitir valores, deixar a terra um pouco melhor depois da nossa passagem por ela (idem).

E, mais recentemente, ainda, nosso Papa volta a falar de São Francisco:”FRATELLI TUTTI”, escrevia São Francisco de Assis, dirigindo-se a seus irmãos e irmãs para lhes propor uma forma de vida com sabor a Evangelho. Destes conselhos, quero destacar o convite a um amor que ultrapassa as barreiras da geografia e do espaço; nele declara feliz quem ama o outro, «o seu irmão, tanto quando está longe, como quando está junto de si». Com poucas e simples palavras, explicou o essencial duma fraternidade aberta, que permite reconhecer, valorizar e amar todas as pessoas independentemente da sua proximidade física, do ponto da terra onde cada uma nasceu ou habita. Este Santo do amor fraterno, da simplicidade e da alegria, que me inspirou a escrever a encíclica Laudato si’, volta a inspirar-me para dedicar esta nova encíclica à fraternidade e à amizade social. Com efeito, São Francisco, que se sentia irmão do sol, do mar e do vento, sentia-se ainda mais unido aos que eram da sua própria carne. Semeou paz por toda a parte e andou junto dos pobres, abandonados, doentes, descartados, dos último (Tutti Fratelli, 1-2).


Fraternalmente,

Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini, ofm

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