Pistas Homilético-franciscanas
Liturgia da Palavra: Sb 9,13-18; Sl 89; Fm 9b-10.12-17; Lc 14,25-33
Tema-mensagem: Grande seguimento > grande abnegação > grande renúncia
Sentimento: Alegria de poder seguir Jesus carregando cada um sua cruz
Introdução
Celebramos hoje os desafios e as exigências da graça de sermos cristãos, isto é, seguidores de Jesus Cristo, o Filho do Deus vivo. Poderíamos chama-lo de “O Domingo dos desafios do cristão”
Os desígnios de Deus conhecidos somente pela graça da Sabedoria divina (Sb 9,13-18)
Quem nos introduz na celebração deste domingo é o livro da Sabedoria. O trecho, proclamado hoje, começa com uma das mais angustiantes questões para um homem religioso: Qual o homem que pode conhecer os desígnios de Deus? Ou quem pode imaginar o desígnio do Senhor?
Entregues a nós mesmos, embora os últimos e admiráveis avanços tecnológicos e científicos, tudo o que sabemos dos mistérios de nós mesmos e do nosso mundo, é ainda muito fugaz e não passa de um grão de areia em comparação com a verdade mais radical do mistério do homem e da criação. Por isso, diz o autor da Sabedoria: Na verdade, os pensamentos dos mortais são tímidos e nossas reflexões incertas... Mas, o autor, além de apontar para este fato dá também sua razão: porque o corpo corruptível torna pesada a alma e a tenda de argila oprime a mente que pensa.
Ora, o que significa esta argumentação senão que os dons intelectivos do homem, principalmente sua inteligência, sua vontade, seu desejo estão em desarmonia com as demais criaturas. Desarmonia ou rompimento porque fomos educados não para um sagrado convívio, mas pensando que devemos ser os proprietários, e até mesmo os dominadores, exploradores e saqueadores das demais criaturas, até mesmo, por vezes, dos nossos semelhantes (Cf. LS 2).
Ora, se esta é a situação do conhecimento do homem em relação às realidades deste mundo, o que dizer do conhecimento acerca das realidades de Deus? Falando dessa inacessibilidade do saber humano aos desígnios de Deus assim se expressa o bem-aventurado Frei Egídio: Todos os sábios e Santos que existiram, existem e existirão, que falaram ou falarão de Deus, não disseram e nunca dirão – em comparação com o que Ele é – mais do que a picada de uma agulha, em comparação com o céu e com a Terra e com todas as criaturas neles existentes e, mil vezes menos. Em verdade, toda a Sagrada Escritura nos fala como que balbuciando. Como a mãe balbucia com seu filho pequenino, porque de outro modo, ele não pode compreender as palavras (DE 2).
Como, haverá, pois, o homem de investigar as coisas do céu? A resposta é dada pelo próprio autor: Ninguém teria conhecido o desígnio do Senhor sem que Este lhe desse Sabedoria e do alto lhe enviasse seu santo Espírito. A lógica é muito simples: o que está acima de nós, só pode ser conhecido por uma luz que seja superior a nós. Como nós não temos esta luz, ela tem que nos ser dada. Por isso, conclui o autor sagrado: Só assim se tornaram retos os caminhos dos que estão na terra e os homens aprenderam o que te agrada, e pela sabedoria foram salvos (Sb 9,18).
Falando desse caminho, assim se expressa São Francisco: Por isso, Deus não pode ser visto senão no Espírito porque o mesmo Espírito é que vivifica, a carne de nada serve (Ad 1).
Sabedoria e Espírito Santo na Sagrada Escritura andam sempre juntos, num paralelismo perfeito. Este é o dom maior que marca a caminhada da história dos homens rumo ao mistério da Trindade divina revelado por Jesus Cristo, a Sabedoria e a salvação divina em Pessoa; Sabedoria ou Espírito que, do alto da Cruz, na hora de sua morte, inclinado a cabeça em sinal de reverência, expirou e inspirou sobre todas as criaturas.
Não à escravidão e sim à fraternidade (Fm 9b-10.12-17)
A segunda leitura tirada da Carta, mais precisamente do Bilhete, a Filemon apresenta um caloroso e amoroso pedido que Paulo, velho, e prisioneiro de Cristo, ao seu amigo e colaborador, Filemon, em favor de seu filho Onésimo a quem gerou para Cristo na prisão. Tudo indica que Onésimo, havia fugido do patrão Filemon depois de um roubo (cf. Fm 1,18). Em situação desconhecida, Onésimo conheceu Paulo e, pelo testemunho deste, acabou por se converter a Cristo (Cf. Fm 1,10).
Paulo, então, solicita a Filemon que receba seu escravo de volta não mais como um escravo, mas como um irmão. Para isso fundamenta seu pedido na força originária da nova sociedade inaugurada por Cristo, da qual ele se tornou um dos mais destemidos pregadores: a liberdade evangélica segundo a qual não existe mais nem grego nem judeu nem escravo nem livre, mas somente irmãos em Cristo. Vale a pena ver com que ternura Paulo trata, tanto a Filemon como a Onésimo: Se ele te foi tirado por um tempo, talvez seja para que o tenha de volta para sempre, já não como escravo, mas muito mais que isso, como um irmão muito querido, muitíssimo querido para mim quanto mais ele o for para ti, tanto como pessoa humana quanto como irmão no Senhor (Fm,6).
Em seu pedido, porém Paulo não quer constranger em nada o amigo e colaborador. Por isso, acrescenta: Mas, eu não quis fazer nada sem o teu parecer, para que a tua bondade não seja forçada, mas espontânea. De novo, como sempre, o medo de Paulo de ferir o dom maior: a liberdade evangélica.
Seguir Jesus Cristo a graça de todas as graças (Lc 14,25-33)
O Evangelho de hoje, começa testemunhando que “grandes multidões acompanhavam e seguiam Jesus”. Entre esses estamos nós.
3.1. Exigências e desafios para seguir Jesus Cristo
O seguimento de Cristo, porém, não acontece sem mais e nem menos. Tem suas exigências ou desafios assim enunciados por Ele mesmo, na versão original: “Se alguém vem a mim e não odeia o seu pai e a sua mãe e a sua mulher e os seus filhos e os seus irmãos e as suas irmãs, e também a sua própria alma, não pode ser meu discípulo” (Lc 14, 26).
3.1.1. Odiar seu pai, sua mãe
Como se vê, na versão original, a fala de Jesus é ainda mais contundente do que a que ouvimos hoje. Em vez de “se desapegar” Ele fala em “odiar” os membros da própria família. Estamos diante de uma sentença que sempre tem “escandalizado” milhares de cristãos. O Evangelho soa de modo estranho para o homem natural, o homem psíquico-anímico. Parece um absurdo ou pelo menos um anômalo ou um louco: manda amar os inimigos e odiar os familiares. Eis o paradoxo da mensagem cristã.
Realmente, Cristo torna-se um sinal contraditório e uma pedra de escândalo para aquele que não se abre a Ele na fé. Mas, a partir da graça do encontro e da fé do seguimento a pedra de escândalo se torna pedra angular de edificação, e o paradoxo se abre para um sentido superior a tudo o que já pretendemos saber. Na verdade, esta sentença está aí no centro da pregação de Cristo como um dos fatores mais fecundos de sua mensagem: a possibilidade de “recebermos cem vezes mais pais, irmãos e irmãs, casas, terras e bens, etc. já no tempo presente e no mundo vindouro a vida eterna” (Cf. Mc 10,30).
“Família”, aqui, não significa apenas pai, mãe, filhos, irmãos, etc., mas, também o clã, a raça que nos proporciona benefícios, segurança, glórias ou a nação, o povo com o qual partilhamos a busca de um destino e bem estar comum neste mundo. Ora fechar-se no amor desta “família” assentada sobre laços de sangue, sobre interesses de uma raça, sobre funções de um partido político, sobre fronteiras de um Estado ou povo que se absolutiza... fechar-se nestes limites significa confundir amor com egoísmo, o bem dos outros com os próprios interesses; significa, sem mais e nem menos, pura e simplesmente, morte.
É movido pela visão desta universalidade evangélica que o Papa Francisco exorta os povos “ricos” para que abram as portas e saibam acolher e integrar em seu meio os milhares de desabrigados e refugiados que fogem da fome, da pobreza, guerras e perseguições. Pois, esta é justamente a Boa Nova de Cristo: criar uma nova humanidade, assentada no cultivo de um amor que derruba as fronteiras deste mundo. Testemunho deste seu amor universal é o acolhimento que Ele oferecia aos excluídos, aos pagãos, aos pecadores, doentes e estrangeiros. Só e na medida em que seguirmos este seu exemplo... só e na medida em que nos dispusermos a procurar o bem de todos, sem exceção, seremos capazes de derrubar as fronteiras da globalização do indiferentismo e do ódio que separa e divide os homens em clãs, partidos, raças e nações. Só nesta medida é que seremos seguidores de Cristo, “universais”, “católicos”. Então sim, quando formos abrasados e purificados pelo fogo deste encontro universal e criador com todos, fará sentido o amor mais restrito de uma família ou de uma raça. Neste caso a família será um fogo do qual sairão labaredas do verdadeiro amor de Cristo que a todos acolhe e ama e por todos dá sua vida. Por isso, São Gregório dizia que este é um “ódio” divino que nasce da caridade e não da paixão que gira em torno de si mesmo e de seus próprios interesses.
3.1.2. Perder a própria vida
Este ódio que provém da verdadeira caridade é tão radical que implica e subsume até mesmo nossa vida, a nossa “alma” (psyché), no texto original. No evangelho de João, Jesus nos põe diante de um paradoxo: “quem ama a sua alma perde-a, e quem odeia a sua alma neste mundo, guarda-a para a vida eterna” (Jo 12, 25). Mestre Eckhart, comentando esta passagem, parafraseia: “Quem ama sua alma nesta vida mortal, como ela é nesse mundo, perde-a na vida eterna; mas quem a odeia, como ela é mortal e nesse mundo, resguarda-a para a vida eterna”. É preciso, pois, odiar a própria alma como e quando ela se apresenta esquecendo-se de ser de Deus e semelhante a Ele; como e quando é tomada pelo mundo, atirada na fugacidade das ambições dos bens terrenos. Só então poderá ser amada como ela pode ser no melhor dela mesma. Hoje, nós diríamos: é preciso odiar a própria vida perdida na inautenticidade de sua subjetividade mundana, para poder amá-la em sua destinação autêntica e assim se torne uma vida verdadeira segundo o vigor de sua origem: o Pai do Céu.
3.1.3. Carregar sua cruz e andar atrás de Jesus
Depois do ódio aos próprios familiares, Jesus fala da necessidade de ”ir atrás Dele cada um carregando sua cruz” (Lc 14, 27). Quem quiser seguir a Cristo precisa assumir a solidão da cruz e a cruz da solidão, suportando-a, num movimento de passagem, de êxodo, “deste mundo para o Pai”. Carregar a própria cruz, significa, abandonar-se inteiramente no seguimento de Jesus Cristo como Ele se abandonou no seguimento de seu Pai; significa deixar-se conduzir ao abandono de toda auto segurança e de toda auto justificação. Eis a oferenda, o verdadeiro sacrifício que realmente agrada a Deus. Cruz ou sacrifício que, ao contrário dos exercícios ascéticos dos fariseus, significa abandono de querer possuir a gratuidade como uma conquista própria. É abertura para recebê-la como presente divino: pura abnegação. “Todo o empenho da abnegação tende, portanto a desintegrar o bloqueamento do eu, para que liberte o seu vigor na abertura da acolhida do radical próprio de nós mesmos, da cordialidade do Deus de Jesus Cristo, cuja essência é a gratuidade” (Harada).
3.1.4. Seguir a Cristo um empreendimento duro e custoso
Também aqui Jesus procura esclarecer seu ensinamento com exemplos ou parábolas. As duas parábolas de hoje falam do cálculo e da esperteza dos homens deste mundo. Quem se propõe construir uma casa examina bem, antes, os recursos de que dispõe a fim de poder levá-la até o fim. O mesmo diga-se de um rei que queira começar uma guerra. O ensinamento é simples e claro: seguir Jesus Cristo é um empreendimento árduo, arriscado e muito custoso. Se os empreendimentos deste mundo exigem despesas, gastos, planejamentos e sacrifícios como pretender seguir a Jesus Cristo de qualquer jeito ou sem nenhum jeito, na pura sorte, sem nenhuma disciplina, sem nenhuma ordem, trabalho, custo ou fadiga!?
O seguimento de Jesus Cristo, essência do ser cristão, é graça e dom de uma conquista. Não se recebe sem empenho, sem luta, sem trabalho. Por isso, Kierkegaard, pensador cristão dinamarquês, em seu tempo, lamentava como o ser cristão era banalizado na cristandade. Considerava-se a fé como um dado de fato, cultural, e não uma tarefa para toda a vida:
“Nos tempos antigos a situação era diferente: então a fé era uma tarefa para toda a vida, porque se estava convencido que a prática do crer não se adquiria em poucos dias e em poucas semanas”.
Por isso, só haverá seguimento de Cristo se ele for assumido como graça cara e preciosa, jamais como “graça barata”: “a graça barata é a graça sem seguimento, graça sem cruz, graça sem Jesus Cristo vivo, encarnado” (Bonhoeffer).
Mas, como acolher dignamente a preciosa e caríssima graça se nós, segundo a primeira leitura e o salmo, somos tão frágeis e efêmeros, se não passamos de um sonho de uma sombra, um nada, enfim? O próprio salmista nos dá a resposta quando exclama:
Quem poderá então descobrir o que há nos céus?
Quem poderá conhecer, Senhor, os vossos desígnios,
Se Vós não lhe dais a sabedoria
E não lhe enviais o vosso espírito santo?
3.2. Renunciar > re-anunciar
Terminadas as parábolas vem a conclusão: “Do mesmo modo, portanto, qualquer um de vós, se não renunciar a tudo o que tem, não pode ser meu discípulo”. O que no início chama de ódio, agora, no fim, chama de renúncia.
Isto significa que a partir do chamado o discípulo já não vive mais a partir do mundo e de suas significâncias e valores, mas a partir de Cristo e do seu seguimento. Renunciar não significa desinteressar-se do mundo, mas direcioná-lo segundo os princípios do Reino de Deus. Entre estes princípios está o do cuidado, do pastoreio de todas as criaturas como irmãs (São Francisco); está, também, o princípio da destinação universal de todos os bens terrestres, pois “a terra é, essencialmente uma herança comum cujos frutos devem beneficiar a todos” (LS 93).
Neste sentido a renúncia evangélica passa a ser um re-anúncio. Ou seja, aquele que segue a Jesus tem a graça de re-anunciar uma nova identidade de si mesmo e das coisas deste mundo e receber de volta uma nova alma que o leva à comunhão com tudo e com todos, não mais a partir do seu eu, de sua gente, da sua vontade própria, mas sim a partir da leveza da graça do encontro, do chamado e do seguimento. Neste sentido, a renúncia não tira, mas dá: dá a graça de uma nova alma que nos leva a viver da, na, e para a gratuidade de Deus > Jesus Cristo crucificado.
Conclusão
Desde o Vaticano II, a Igreja, nós cristãos, estamos tomando consciência, cada vez mais clara e exigente, que não basta ser cristão só de nome, nem mesmo um “católico praticante”. A exemplo de São Francisco - proposto pelo nosso Papa como modelo de restauração da Igreja e do mundo - é preciso que sigamos os passos de Jesus, que imitemos seus gestos, seus feitos e suas obras; que procuremos e cultivemos, acima de tudo, seus sentimentos, seus desejos e sua grande Paixão pelo Pai e pelos homens, principalmente pelos mais sofredores e desamparados. Ser seguidor de Cristo, significa, assim, “tomar a decisão de se deixar encontrar por Ele e de procurá-Lo dia a dia, sem cessar” (EG 3). Eis a graça mais preciosa, a redescoberta mais importante e a exortação mais incisiva que a Igreja vem se propondo e nos fazendo hoje. Pois, poder seguir Jesus Cristo não é seguir qualquer um, mas seguir o Senhor dos senhores, o Mestre dos mestres, o Filho do Deus vivo, Aquele que tem palavras de vida eterna. Eis o sentido dos ditos evangélicos deste Domingo.
Em si, o significado destes ditos são muito simples. Tomemos o exemplo de São Francisco. Quando quis fazer-se cavaleiro teve de abandonar sua alma, vender todos os seus bens de comerciante e assumir a alma da nobreza cavalheiresca. Depois, quando sentiu o chamado do Senhor teve de, mais uma vez, desfazer-se de todos os seus bens, abandonar, “odiar”, trocar sua alma de cavaleiro, de filho de Pedro Bernardone, para assumir a disposição, o ânimo, o espírito, a alma do Crucificado, de filho do Pai do Céu. O mesmo diga-se de um plebeu que deseje tornar-se rei. Terá que sacrificar sua mesquinha alma de plebeu substituindo-a pela alma de rei. O solteiro que casa tem de sacrificar sua alma de solteiro para assumir a alma de casado. O mesmo diga-se do secular que deseja a vida de sacerdote ou consagrado. Terá que “odiar” sua alma de secular ou de mundano para ganhar e salvar a alma de sacerdote ou consagrado.
Poder seguir Jesus Cristo é graça custosa, mas também jubilosa; é exercício diário de amor e doação. Por isso diz nosso atual Papa: “Quando caminhamos sem a Cruz, edificamos sem a Cruz ou confessamos um Cristo sem Cruz, não somos discípulos do Senhor: somos mundanos, somos bispos, padres, cardeais, papas, mas não discípulos do Senhor”.
Fraternalmente,
Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini
23º DOMINGO DO TEMPO COMUM
Introdução
Na liturgia de hoje somos colocados em face do desafio e da graça do seguimento de Jesus Cristo: são-nos apresentadas as condições de possibilidade do discipulado cristão. É o Mestre mesmo que nos revela. Ele nos revela as condições para o seu seguimento e nos dá, ao mesmo tempo, a graça de segui-lo.
A primeira leitura e o salmo nos fazem tomar consciência de nossa fragilidade.
O que é o homem? Um ser efêmero? Sonho de uma sombra?
Vós reduzis o homem ao pó da terra
E dizeis: «Voltai, filhos de Adão».
Mil anos a vossos olhos são como o dia de ontem que passou
E como uma vigília da noite.
Vós os arrebatais como um sonho,
Como a erva que de manhã reverdece;
De manhã floresce e viceja,
À tarde ela murcha e seca.
Um nada é o homem, sem a Sabedoria (o Filho) e o Dom de Deus (o Espírito Santo, que o Pai e o Filho nos concedem). Precisamos, pois, da força do alto, e da sabedoria divina. É Deus que dá plenitude ao vazio de nossa vida efêmera. Por isso o salmista diz:
Ensinai-nos a contar os nossos dias,
Para chegarmos à sabedoria do coração.
Voltai, Senhor! Até quando…
Tende piedade dos vossos servos.
Saciai-nos desde a manhã com a vossa bondade,
Para nos alegrarmos e exultarmos todos os dias.
Desça sobre nós a graça do Senhor nosso Deus.
Confirmai, Senhor, a obra das nossas mãos.
Frágeis e ignorantes, precisamos, pois, que Deus mesmo nos revele, por meio de sua Sabedoria, isto é, de Cristo, os caminhos para segui-lo:
Qual o homem que pode conhecer os desígnios de Deus?
Quem pode sondar as intenções do Senhor?
Os pensamentos dos mortais são mesquinhos
E inseguras as nossas reflexões (...).
Mal podemos compreender o que está sobre a terra
E com dificuldade encontramos o que temos ao alcance da mão.
Quem poderá então descobrir o que há nos céus?
Quem poderá conhecer, Senhor, os vossos desígnios,
Se Vós não lhe dais a sabedoria
E não lhe enviais o vosso espírito santo?
Peçamos, pois, que o Pai nos dê o Espírito Santo, para que nós possamos acolher a sua Sabedoria, o Filho, que nos revela seus desígnios e seus caminhos, que estão tão acima de nossas reflexões e pensamentos. Que ele nos dê também a centelha da boa vontade para seguir pelos seus caminhos e nos dê a força para que esta boa vontade se torna obra perfeita de nossa liberdade e dê fruto e nossa ser, levando-nos à perfeição no seguimento de Cristo, na conformidade com Ele, sim, na identificação com Ele.
Confiantes, voltemos, pois, nossa atenção para o evangelho de hoje.
O que Jesus hoje diz é voltado para as multidões que o seguiam em seu caminho para Jerusalém, isto é, para a oferenda da Cruz e para o arrebatamento para junto do Pai. Nós fazemos parte destas multidões, nós que, por graça divina, e não por mérito humano, fomos chamados para o seu seguimento. O seguimento de Jesus Cristo, essência do ser cristão, é o dom de uma conquista. É uma graça – favor divino, dom gratuito e gracioso. Mas é graça preciosa. Custou o derramamento do sangue de Jesus Cristo na cruz. Por isso, essa graça não pode ser recebida como “graça barata”: “a graça barata é a graça sem seguimento, graça sem cruz, graça sem Jesus Cristo vivo, encarnado” (Bonhoeffer).
A dom da fé no seguimento de Cristo não se recebe sem empenho, sem luta, sem trabalho. Fé é dom de uma conquista e conquista de um dom. A graça da fé no seguimento de Cristo não pode ser reduzida a mercadoria em liquidação. Como se fôssemos dispensados de todo empenho de nossa boa vontade. Kierkegaard, pensador cristão dinamarquês, em seu tempo, lamentava como o ser cristão era banalizado na cristandade. Considerava-se a fé como um dado de fato, cultural, e não como uma tarefa para toda a vida. Neste ponto, qualquer coincidência com o nosso “mundo cristão” de hoje, não é mera coincidência. Recordando Abraão, o pai da fé, ele dizia:
No nosso tempo ninguém pára mais na fé, mas vai além. Perguntar aonde estes chegam, seria talvez uma estupidez, enquanto é sinal de cortesia e de educação admitir que todo o mundo tem fé, porque, de outro modo, não teria sentido o dizer que vão além. Nos tempos antigos a situação era diferente: então a fé era uma tarefa para toda a vida, porque se estava convencido que a prática do crer não se adquiria em poucos dias e em poucas semanas. Quando o velho experiente chegava perto do fim, depois de ter combatido o seu combate (2 Tm 4,7) e conservado a sua fé, o seu coração era ainda bastante jovem para não esquecer a angústia e o temor que o tinham formado desde jovem e dominado na idade viril, mas de que nenhum homem consegue com a idade desembaraçar-se – a menos que ele consiga o quanto antes ir além! Do ponto ao qual essas veneráveis figuras conseguiram se aproximar, nos nossos tempos, ao contrário, cada qual começa por ir além.
O evangelho de hoje nos desperta da letargia de nossa vida pretensamente cristã. Requer a superação de nossa tibieza cotidiana. Ele nos acorda para a exigência do seguimento de Cristo e para as suas condições de possibilidade. Requer de nós que sejamos decididos para este seguimento. Põe-nos em face de uma “tarefa para toda a vida”. Dispõe-nos para combate o “bom combate” (kalón agóna), mantendo o frescor da juventude do coração, suscetível ao temor e ao tremor, mas ao mesmo tempo, confiante na misericórdia do Pai, que nos comunica a sua Sabedoria, o Filho encarnado, Jesus Cristo, e nos dispensa a Força do Alto, o Espírito Santo, nosso “Paráclito” (encorajador, consolador, defensor). Os grandes prêmios, dirá São Gregório, não se podem alcançar a não ser por meio de grandes trabalhos.
Deixemos, na tradução, ecoar em nossos ouvidos as palavras de Jesus com toda a sua gravidade e deixemos que elas penetrem em nosso coração com toda a sua contundência e pungência: “Se alguém vem a mim e não odeia o seu pai e a sua mãe e a sua mulher e os seus filhos e os seus irmãos e as suas irmãs, e também a sua própria alma, não pode ser meu discípulo” (Lc 14, 26). Como é estranho o evangelho! Como ele não se deixa domesticar! Manda amar os inimigos e manda odiar aqueles que nos são mais caros! Não nos parece, às vezes, cruel e inumano? O nosso senso comum se sente abalado em face de palavras como estas. E, no entanto, sob a figura de uma exigência radical, estas palavras escondem uma imensa ternura, a imensa paixão de um Deus encarnado, que está doido que nós não só venhamos a Ele, mas que nós o sigamos, caminhemos com ele, pelos caminhos que ele mesmo nos abre, para chegarmos à feliz consumação de todas as coisas. Que estranho: aquele que tanto amou – que os amou até o fim – que nos deu o mandamento do amor ao próximo como a si mesmo, agora diz: é preciso odiar os próximos que nos são mais próximos e odiar a nós mesmos. Aquele que veio nos salvar a alma – isto é, a força da vida que nos habita e nossa identidade espiritual, pessoal, mais íntima – diz que devemos odiá-la.
Que ódio é este? São Gregório responde: um ódio que nasce da caridade, não da paixão. Há um amor de si e dos outros que nos arruína. É um amor que nos leva à indiferença e à indecisão, à condescendência permissiva, à letargia e à tibieza de uma vida, em que nós nos deixamos levar pelo mundo, isto é, por uma mentalidade esquecida de Deus e do seguimento de Cristo. Há, também, um ódio de si e dos outros, que nos salva e que põe a salvo nossos próprios relacionamentos com eles. Trata-se de um ódio que se volta para tudo que é engano e dissimulação nos relacionamentos com tudo o que somos e não somos, com o outro de nós mesmos e com o outro dos outros. Um ódio, portanto, que, paradoxalmente, nos leva a amar melhor, tanto a nós mesmos, quanto aos outros. Sem o amor da virtude e o ódio do vício, os nossos relacionamentos com tudo o que somos e não somos, com o outro de nós mesmos e o outro dos outros não se salvam, isto é, não encontram sua justa direção, não nos reconduz para a plenitude do que podemos ser, antes, nos arruína. Há, pois, um amor que pode ser ruim; e um ódio que pode ser bom. Este ódio não se volta contra nenhuma pessoa, mas sim contra o mal que pode se instalar nos nossos relacionamentos com as pessoas, que pode viciar e arruinar estes relacionamentos. Um mal que vem de não sabermos amar como convém. Ou de não sermos capazes de amar como convém. Um mal que vem do próprio desvairar-se de nosso amor. Este ódio, pois, salva a nossa capacidade de amar. Nos remete de volta à necessidade de aprender a amar como convém, isto é, como Deus ama, quer dizer, como Cristo nos revelou a essência do amor, aquilo que a vida cristã chama de “caridade”. O ódio que nasce da caridade: eis o ódio que Cristo nos ensina hoje.
Este ódio que provém da caridade é tão radical, que implica e subsume até mesmo nossa vida, no texto original, a nossa “alma” (psyché). No evangelho de João, Jesus nos põe diante de um paradoxo: “quem a sua alma perde-a, e quem odeia a sua alma neste mundo, guarda-a para a vida eterna” (Jo 12, 25). Mestre Eckhart, comentando essa passagem, parafraseia: “Quem ama sua alma nesta vida mortal, como ela é nesse mundo, perde-a na vida eterna; mas quem a odeia, como ela é mortal e nesse mundo, resguarda-a para vida eterna”. É preciso, pois, odiar a própria alma como ela é no esquecimento de Deus, como é tomada pelo mundo, atirada na fugacidade das ambições, para poder amá-la como ela pode ser no melhor dela mesma. Hoje nós diríamos: é preciso odiar a própria vida perdida na sua inautenticidade, para poder amá-la em sua destinação autêntica, para que ela se torne uma vida verdadeira e boa. Eckhart esclarece: “quem ama a alma na pureza, que é a natureza simples da alma, odeia-a e é seu inimigo nessa roupagem terrena, odeia-a e está triste e perturbado por ela estar tão longe da pura luz que ela é em si mesma”. Em seguida, ele dá três razões pelas quais a alma deve odiar a si mesma, no seguimento de Deus. A primeira razão, por causa do egoísmo, que nos leva a nos tomar posso de nossa alma como se fosse nossa, e não como sendo de Deus: “enquanto ela for minha devo odiá-la, pois, enquanto minha, ela não é de Deus”. A segunda, por causa do homem estar alienado de Deus: “minha alma não está plenamente colocada, plantada e re-fletida em Deus”. O homem precisa expropriar-se de si mesmo e torna-se próprio de Deus, no amor a Deus, para que Deus se torne o próprio do homem. A terceira, por causa de que a alma quer saborear-se a si mesma junto com o saborear de Deus: “Se a alma saboreia a si mesma com o sabor de como ela é alma e Deus lhe tem sabor com a alma, isso não está direito. Deus deve lhe ter sabor nele mesmo, pois ele é todo e de uma vez acima dela. É por isso que Cristo disse: “quem ama sua alma a perde” (Jo 12, 25).
Quando, pois, o homem se desprende de tudo e de todos, pelo amor do seguimento de Deus, isto é, de Cristo, então ele estabelece um vínculo verdadeiro e bom com sua própria alma, no melhor dela mesma, do que ela pode ser, e com os outros. Perdendo-os na ruptura do seguimento, os recebe de volta como no vínculo do seguimento. Podemos compreender algo disso, olhando para o exemplo de Abraão, o nosso pai na fé, isto é, na obediência do seguimento de Deus, isto é, de Cristo. Meditemos isso com as palavras de Bonhoeffer:
Ele teve que abandonar amigos e a casa paterna, Cristo se interpôs entre ele e os seus. Neste caso, a ruptura se fez visível. Abrão se tornou estrangeiro por amor da terra prometida. Este é o seu primeiro chamado. Sucessivamente, Abraão foi chamado por Deus a sacrificar o filho Isaac. Cristo se pôs entre o pai da fé e o filho da promessa. Aqui não é só a imediatez natural, mas também a imediatez espiritual que foi infligida. Abraão deve aprender que a promessa de Deus não está ligada nem mesmo a Isaac, mas, justamente, só a Deus. Nenhum outro homem soube desta chamada de Deus, nem mesmo os servos que acompanhavam Abraão ao lugar do sacrifício. Abraão fica totalmente só. De novo é em tudo e por tudo um indivíduo, como quando saiu da casa paterna. O chamado foi por ele acolhido, assim como foi pronunciado, ele não o interpreta, não o espiritualiza. Deus é tomado a sério na sua palavra, Abraão está pronto a obedecer. Contra toda imediatez natural, contra toda imediatez ética, contra toda imediatez religiosa, ele se faz obediente à palavra de Deus. Ele leva o filho ao sacrifício. Está disponível para realizar de modo visível a ruptura secreta, por amor do mediador. Por isso, no mesmo momento, ele recebe de novo como dom tudo aquilo que ele tinha sacrificado. Abraão recebe de novo o filho. Uma vítima mais apropriada lhe foi mostrada por Deus, para substitui-la por Isaac. É um giro de 360 graus. Abraão reconquistou Isaac de volta, mas agora, num modo diverso de como era antes (...). Abraão desce do monte com Isaac, como com Isaac ele tinha subido, mas tudo mudou. Cristo se interpôs entre pai e filho. Abraão tinha abandonado tudo e se tinha posto no seguimento de Cristo, e agora, de cheio no seguimento, pode voltar a viver no mundo em que ele já vivia antes. Exteriormente, tudo resta como no passado. Mas o passado passou, e tudo se fez novo. Tudo teve que passar através de Cristo.
O chamado ao seguimento de Cristo provoca em nós uma ruptura: uma cisão, uma fratura, um desprendimento, em todos os nossos relacionamentos, tanto com os outros, quanto conosco mesmos. Ele rompe toda a imediatez. A partir do chamado para o seguimento, nós nos tornamos sós. O chamado ao seguimento de Cristo nos põe em nossa última solidão, e, neste sentido, nos individua: nos diferencia, nos torna separados de tudo e de todos, ao mesmo tempo que nos reúne, nos recolhe, na unidade simples e indivisível de nossa identidade, uma identidade por ser conquistada, na fé, em temor e tremor. Chamado nos singulariza, nos individua, à medida que nos conclama para a decisão da entrega na fé e no amor. Ainda nas palavras de Bonhoeffer: “O chamado de Jesus para o seguimento faz do discípulo um ser singular. Quer queira quer não, deve decidir-se, e deve fazer isso sozinho. Não é uma escolha própria, aquela de querer ser um indivíduo, mas é Cristo que torna tal aquele que chama. Cada um é chamado sozinho. Em solidão deve seguir Jesus”. Isso quer dizer que, para responder a este chamado, o homem deve evitar fazer dos vínculos com os outros subterfúgio e anteparo, proteção contra esta solidão. “Cristo quer pôr o homem na condição de solidão, porque este deve poder ver somente aquele que o chamou. No chamado de Jesus já aconteceu a ruptura com as condições naturais em que o homem vive”. O homem já não vive mais a partir do mundo e de suas significâncias, mas a partir de Cristo e do seu seguimento. Paulo falou desta ruptura escrevendo aos cristãos de Corinto:
Eis o que eu digo, irmãos: o tempo se abreviou. Doravante, aqueles que têm mulher sejam como se não a tivessem, os que choram como se não chorassem, os que se alegram como se não se alegrassem, os que compram como se não possuíssem, os que tiram proveito deste mundo, como se não aproveitassem realmente. Pois a figura deste mundo passa (1 Cor 7, 29-31).
O cristão se atém às coisas do mundo sem se deixar ser tomado, tido por elas. Ele tem as coisas de tal modo que, por elas, ele não se deixa prender ao mundo, isto é, ao horizonte de uma vida esquecida de Deus, que corre atrás da nulidade das coisas, em sua fugacidade.
Na verdade, não é o homem que rompe com as condições naturais em que ele vive, com o seu “ser-no-mundo” esquecido de Deus. É o chamado de Cristo que produz este rompimento, esta cisão, esta decisão. A fé no seguimento de Cristo consiste em acolher, receber, o dom, a graça dessa ruptura. É que esta ruptura é a libertação da existência para a liberdade da verdade de Deus, isto é, de Cristo. Na fé, o homem não vive mais a partir de si, do seu próprio arbítrio, mas sim a partir de Deus, no seguimento de Cristo. Esta fé é um renascimento, e, neste renascimento, ele morre para as relações naturais e imediatas com o mundo, com os outros, consigo mesmo, para passar a viver a partir de Cristo. Para o discípulo, Cristo há de se tornar o medium de sua vida. Cristo é, para ele, o mediador, não só entre homem que ele é e Deus, mas também entre o homem que ele é os homens que ele não é, os outros. “Ele é o mediador não só entre Deus e homem, mas também entre homem e homem, entre homem e realidade”. Na existência da fé, não há outra passagem, não outro caminho, para alcançar a realidade como tal e como um todo, e os outros, sim, até a si mesmo, senão Cristo. Assim, todos os relacionamentos do discípulo como os outros, são rompidos pelo chamado ao seguimento, mas, ao mesmo tempo, desde este seguimento, recebem uma nova tessitura. Isso é vida cristã. Mesmo os relacionamentos familiares, numa família cristã, precisam desta dinâmica de ruptura com a imediatez das relações naturais e de reestruturação desde a fé no seguimento de Cristo. Assim, o esposo e a esposa tornam-se tais em Cristo. O outro, que sempre me escapa em sua transcendência, na inacessibilidade de seu mistério, por mais íntimo que me seja, eu só posso alcançar passando por Cristo. É ele o mediador entre mim e o outro. O cristão não vive na imediatez. Nem na imediatez estética, nem a imediatez ética, e nem mesmo na imediatez religiosa com o mundo. Ele vive no “meio” Cristo. E, desde este meio, é que ele se relaciona com tudo e com todos. Mesmos os vínculos pessoais mais estreitos – aqueles do sangue e do afeto – precisam ser rompidos, no seguimento, para serem re-tecidos na tessitura da vida em Cristo. Cristo é o lógos, a Palavra de Deus, que, ao mesmo tempo, divide e reúne. Divide, provocando cisão, ruptura, decisão e solidão. Reúne, recriando, a partir disso, uma nova comunhão com tudo e com todos.
A segunda palavra de Jesus a respeito da condição de possibilidade do seguimento dele é a que fala da cruz: “Aquele que não carrega a sua cruz e não vem em meu seguimento não pode ser meu discípulo” (Lc 14, 27). A identidade do cristão, daquele que vem a Cristo e o segue, atraído por Ele, se constitui a partir da diferenciação e da cisão instaurada pela solidão. A cruz da solidão é, aqui, a solidão da cruz. A cruz é o acontecer da diferença. “Diferença”, em grego, se diz diaforá: indica o movimento de portar, carregar, levar (fero) num movimento de atravessamento, numa travessia (diá). Quem quiser seguir a Cristo precisa assumir a solidão da cruz e a cruz da solidão, suportando-a, num movimento de passagem, de cumprimento e consumação de uma travessia, “deste mundo para o Pai”: participação e comunhão com Cristo no seu mistério pascal: paixão, morte e ressurreição. Quem segue Cristo deve fazê-lo como um homem que já morreu. A morte é o desprendimento, a despedida, de tudo o que sendo no mundo. “É morrendo, que se vive para a vida eterna”. É perdendo a vida no mundo, na temporalidade, que se a guarda para a vida eterna em Deus. Esta morte é abandono. Carregando a cruz do seguimento, o discípulo deve se deixar conduzir ao abandono de toda autosegurança e de toda autojustificação. Este autoabandono da liberdade nãos mãos graciosas de Deus é seu sacrifício: sua oferenda de si. É o abandono de querer possuir a gratuidade como uma conquista própria. É abertura para recebê-la como presente divino. O sentido mais profundo da abnegação consiste em deixar-se ser colhido e acolhido por e para a gratuidade de Deus. “Todo o empenho da abnegação tende portanto a desintegrar o bloqueamento do Eu, para que liberte o seu vigor na abertura da acolhida do radical próprio de nós mesmos, da cordialidade do Deus de Jesus Cristo, cuja essência é a gratuidade” (Harada).
O evangelho de hoje termina falando de renúncia. É outra palavra para abnegação. Só que, enquanto abnegação fala da abertura da liberdade que nos vem da negação, renúncia fala do re-anúncio. A negação da abnegação é uma negação que liberta, que desprende. É a negação de uma renúncia. Renúncia é re-anúncio. Aquele que quer seguir a Jesus tem a graça de re-anunciar uma nova identidade de si mesmo e receber de volta uma nova comunhão com tudo e com todos, não mais a partir do eu, da sua vontade própria, mas sim a partir da leveza da graça, isto é, da gratuidade e graciosidade de Deus. A renúncia não tira, ela dá: dá a graça de viver da, e na, e para a gratuidade de Deus.
As duas parábolas contadas por Jesus falam da renúncia. É necessário, desde o princípio, no seguimento de Cristo, que o homem tenha a disposição e a disponibilidade para consumar, isto é, para levar até o sumo, até o extremo, a obra deste re-anúncio. O que o evangelho de hoje, no início, chama de ódio, no fim, chama de renúncia. Quem quer erguer um prédio, precisa ver, antes de começar a construir, se tem dinheiro para terminar a obra. Quem entra numa guerra, precisa, antes de entrar, examinar se tem forças para se medir com o inimigo. Assim também, quem se dispõe a seguir Cristo, deve examinar se estar disposto a consumar a obra perfeita da renúncia de si, no assumir a solidão da cruz e a cruz da solidão. Mas esta solidão é fonte da verdadeira e mais plena comunhão, com Deus, com os outros, consigo mesmo. No dizer de Agostinho, o sentido da renúncia do discípulo de Cristo consiste em ele odiar o que é particular (= parte), para amar o que é comum (= todo). No sumo da solidão da cruz acontece, para o discípulo, a verdadeira comunhão com tudo e com todos.
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