Leituras: 1Rs 19,9.11-13; Sl 84; Rm 9.1-5; Mt 14,22-33
Tema-mensagem: Deus-Pai, o incessível, o inteiramente Outro, é a suavidade que a tudo e a todos acompanha e sustenta.
Introdução
A questão do modo como Deus se relaciona com suas criaturas, em especial com os homens, atravessa a história das Religiões. Por vezes, pensa-se que Ele o faça de modo soberbo, despótico, exigindo, às vezes, até mesmo o sacrifício de vidas humanas. Outros, bem contrário, julgam que Ele se comporta como um grande protetor e benfeitor do homem. Mas, sempre, a modo de um Deus distante.
A mensagem da Sagrada Escritura e de Jesus, principalmente, é bem outra: Ele é o Emanuel, o Deus conosco; um Pai que gosta de estar bem perto de nós, de andar conosco de modo suave e pacífico, mesmo e principalmente, nas violentas e funestas tempestades da vida, como podemos ver nas leituras de hoje.
1. A Suavidade é Deus (1Rs 19,9.11-13)
Quem, hoje, nos introduz neste mistério é um pequeno trecho do primeiro livro dos Reis. Elias, após ter fugido de Jezabel, esposa do rei Acab, porque temia ser morto, chega ao monte Horeb. Horeb é mais que um monte. Trata-se de um monumento, um memorial das mais significativas e maravilhosas teofanias do Antigo Testamento. Nele deu-se a origem da fé pura; nele o Deus vivo de Abraão, Isaac e Jacó desceu das alturas para encontrar-se com seu Povo e estabelecer com ele uma aliança inquebrantável e eterna (Cf. Ex 33,18-34,9). Por isso, recebe o dignificante título de monte de Deus (1Rs 19,9).
Nesse monte, o profeta Elias entrou numa gruta, onde passou a noite. E eis que a palavra do Senhor lhe foi dirigida nestes termos: “Sai e permanece sobre o monte, diante do Senhor, porque o Senhor vai passar” (1Rs 19,11). A intenção de ligar a teofania que então irá se dar com a de Moisés é muito clara: dizer que o Deus que se revelara outrora a Moisés e aos antigos patriarcas é o mesmo que está conduzindo Elias. Mas, esse Deus não é como Elias estava imaginando ou querendo, um Deus da violência, que derruba e destrói os inimigos. Por isso, a narrativa prossegue fazendo questão de realçar que antes do Senhor, porém, veio um vento impetuoso e forte, que desfazia as montanhas e quebrava os rochedos. Mas, o Senhor não estava no vento (idem). O mesmo deu-se com o terremoto e o fogo: o Senhor não estava neles. Era preciso, pois não confundir, muito menos identificar Deus com esses elementos da natureza, muito expressivos, principalmente entre os pagãos. Deus está para além de tudo e de todas as criaturas e acontecimentos, mesmo dos mais belos, expressivos, fortes e violentos. Ou melhor, que Deus está presente neles, sim, mas como raiz ou fonte que os sustenta e conduz sempre de modo humilde, gracioso e suave. Por isso, o texto conclui: E depois do fogo, ouviu-se o murmúrio de uma suave brisa (1Rs 19,13).
O texto, portanto, não está dizendo que Deus não esteja presente nos momentos duros e cruciais da vida, como as guerras, as brigas, as mortes brutais, ocasionais ou voluntárias, os terremotos, as pandemias, etc. A mensagem é outra: Ele não se nega estar presente em todas estas situações. Só que o faz não a modo da violência ou da força brutal, mas, antes, ao modo da humildade e da suavidade. Mesmo quando castiga, o faz com a brandura de uma brisa.
Portanto, é assim, na suavidade de Deus ou que é Deus, que Elias deverá levar adiante sua nova missão de profeta e não com a aspereza e a amargura da violência. Mais tarde dirá o profeta Zacarias: Tomei o meu bastão “Suavidade” e quebrei-o para romper o meu pacto que concluíra com todos os povos (Zc 11,10). E, Jesus proclamará que seu peso é leve e seu jugo é suave (Mt 11,28).
2. Jesus, um Deus que marca presença e caminha em meio as nossas turbulências (Mt 14,22-33)
Continuando a reflexão acerca do modo de Deus fazer-se presente em nossa vida, a Igreja proclama hoje o conhecido milagre de Jesus andando sobre o mar em meio às ondas de uma grande tempestade.
2.1. Jesus se retira sozinho para o monte a fim de rezar
O milagre se dá logo após o milagre da multiplicação dos pães. Jesus ordenou que os discípulos entrassem na barca e seguissem, à sua frente, para o outro lado do mar, enquanto ele despediria as multidões. Depois de despedi-las, Jesus subiu ao monte, para orar a sós.
Tudo, desde a barca até o monte, é muito enigmático e simbólico. A barca, geralmente tida como símbolo da viagem, da travessia e da própria vida do homem, aqui aponta também para a Igreja. É dentro dela que navegam os fiéis a fim de vencer as tempestades exteriores, do mundo, vindas dos inimigos do Reino de Deus com a violência de seus ídolos; é dentro dela e através dela que os fiéis lutam e se defendem, também, contra as tempestades das paixões interiores como a vanglória, a soberba, a prepotência, a luxúria, etc.
Foi movido por este princípio, que Jesus, logo após o milagre da multiplicação dos pães se desprende dos discípulos enviando-os à sua frente para o outro lado do mar e despede as multidões para que voltassem para suas casas. Jesus jamais fatura em cima de seus milagres. Pelo contrário, são sempre ocasião para crescer na humildade e no desprendimento do bem que realiza e até mesmo das pessoas, principalmente dos seus discípulos. Por isso, os envia à sua frente, ficando Ele para trás. Quem deve aparecer são eles e não Ele. Por isso, também, e principalmente, sempre depois de um milagre, para sentir-se ainda mais unido à fonte de onde eles brotavam, o Pai, sobe ao monte para orar a sós (Mt 14,23).
Monte, é para recordar, também e de novo, que Jesus é o novo Moisés com uma diferença: Jesus não é apenas o Messias prometido, um novo e perfeito intermediário entre Deus e seu Povo, mas o próprio Deus. Daí a insistência: a noite chegou e Jesus continuava ali, sozinho. Ele é o Outro completamente diferente, o Só. Não é da terra, mas do alto, do monte, do céu. Assim, diferentemente de Moises que após o encontro com o Senhor voltou para junto do povo, Jesus, ao contrário, continuava lá, sozinho, junto de Deus porque Ele é também Deus.
Mas, por outro lado, deve-se também dizer que o fato de Jesus retirar-se para o monte é para dizer que este verdadeiro Filho de Deus é também homem, Filho do homem como nós. Por isso, como cada um de nós, pobres criaturas, também ele necessita, antes ou depois de seus milagres, recorrer à oração, à suplica ao Pai a fim de manter-se ligado a Ele. Assim, se explicita o artigo de nossa fé através do qual proclamamos todos os Domingos: “Creio em Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem”.
2.2. Jesus aparece aos discípulos no meio da tempestade
A segunda parte começa assinalando que a barca, já longe da terra, era agitada pelas ondas, pois o vento era contrário (Mt 14,24). Imagem muito clara e bela para expressar a realidade que cerca e envolve a caminhada do discípulo e da Igreja de Jesus: o mundo é um mar agitado pelas ondas da soberba, do delírio envaidecido da prepotência, da violência, da ganância, do lucro a qualquer preço, do consumismo e, acima de tudo, da incredulidade, como aconteceu com os discípulos e, acima de tudo, com Pedro.
Foi então que, pelas três da madrugada, Jesus veio até os discípulos, andando sobre o mar (Mt 14,25). Fica muito clara a mensagem: quem toma a iniciativa para a busca da salvação não são os discípulos, mas Jesus. É ele quem se antecipa para ir ao encontro da barca que estava prestes a se afundar. Mas, o mais impressionante ainda é que apesar de tê-lo avistado eles não o reconheceram. Como, se há poucas horas eles estiveram juntos e participaram do banquete dos pães multiplicados? A mensagem é muito forte. Podemos comungar de Jesus todos os dias e mesmo assim quando Ele se apresenta no meio das dificuldades ou nos outros que nos perseguem e maltratam, não O vemos, não o reconhecemos mais, não O divisamos, diria São Francisco (Cf. Testamento, 9). Achamos que essa sua presença é irreal, uma fantasia, que não é bem assim, etc. É preciso, então que o diga, sempre de novo: que é Ele mesmo, que Ele não os abandonou à mercê das ondas e dificuldades da vida; que, enfim, precisamos crer que Ele está aí nas adversidades, perseguições e mesmo nas mais deploráveis degradações humanas, como na bonança e no acolhimento. Por isso não deviam ter medo.
2.3. Ser discípulo é ir ao encontro de Jesus no meio das ondas perigosas
Chegamos assim ao coração deste evangelho: o pedido de Pedro para que Jesus o mande ir até Ele, ou seja o pedido da graça da fé. Pedro não ousa, nem está em sua competência, tomar a iniciativa de ir ao encontro do Senhor. Neste ponto, pelo menos, foi humilde. Por isso diz: Senhor, se és tu, manda-me ir ao teu encontro, caminhando sobre as águas (Mt 14,28). Só existe fé porque ou se o outro nos atrai. E continente, ao mandato de Jesus, desceu da barca e começou a andar sobre a água em direção a Jesus.
Temos, assim, aqui, muito bem descrito o caminho da fé: Jesus que está e aparece no meio das tribulações e não fora é quem nos ordena para que o busquemos. Mas, o caminho, inclui também o medo, pois o vento às vezes se torna muito forte. Segue então como passo decisivo do crescimento da fé o grito, a súplica: Senhor, salva-me! Vem, então, a lição final de Jesus: homem fraco na fé, por que duvidaste? (Mt 14,31).
O que Jesus acaba de dizer pode-se considerar uma censura, mas também, uma exortação. A fé não é uma crença fixa, estática, sempre a mesma, mas um processo de busca, um caminhar sempre novo e de novo ao encontro de Jesus. É ser sempre discípulo. É um crescer para dentro do mistério do Filho de Deus e do Filho do Homem. E isto se chama ou significa responder a graça do encontro ou ao encontro da graça: fé. Por isso, crer, dentro dessa dinâmica do encontro, é sempre um processo de crescimento a partir de ou dentro do outro, como acontece, por exemplo com os esposos. Assim, quando rezamos “creio em Deus Pai”, “creio em Jesus Cristo”, “creio no Espírito Santo”, estamos anunciando alto e bom som que estamos crescendo em Deus, crescendo em Jesus Cristo, crescendo no Espirito Santo, etc. Nesse sentido, nossa fé, a fé de um discípulo, será sempre fraca porque o mistério que vem ao nosso encontro em meio às tempestades da vida é sempre infinito, celeste, divino. Por isso, não nos resta outra coisa a fazer senão o que fizeram aqueles discípulos que estavam na barca (Igreja): prostraram-se diante dele, dizendo: “Verdadeiramente tu és o Filho de Deus!” (Mt,14,33).
3. O grito de dor de Paulo (Rm 9.1-5)
A segunda leitura é tirada da Carta de Paulo aos Romanos. Um pouco antes, no capítulo oitavo, ele se esmerara todo para mostrar o quanto Deus se dedicara, se doara para, através de seu Filho Jesus, fazer de todos os povos, a começar pelo seu Povo predileto, Israel, um Povo novo, de filhos de Deus e não de escravos. Israel, porém, não apenas nada fez por merecer esta graça, mas a rejeitou completamente, condenando o seu Senhor a mais vergonha das mortes: a Cruz.
Ora, Paulo fora um dos mais apaixonados defensores do “Deus” judaico, o Deus da Lei, ajudando a mandar Cristo para a Cruz. Mas, agora, fora agraciado com a bênção da conversão que o levou ao encontro de Cristo, ao Deus vivo e verdadeiro, ao Deus que nos libertou da escravidão da lei para fazer-nos filhos adotivos de Deus Pai.
Como um irmão mais velho, Paulo sofre profundamente ver seu povo querido, amado e pelo qual dedicara toda a sua juventude, rejeitar radicalmente a graça da aliança e da eleição divina prometida a eles há tantos séculos, desde Abrão. Como era possível Israel jogar fora tão precioso dom? Paulo, como todos nós, não consegue entender, pois eles são israelitas. A eles pertence a filiação adotiva, a glória, as alianças... Deles é que descende, quanto à sua humanidade, Cristo... (Rm 9,4-5).
Por isso, depois de proclamar que não estava mentindo, mas que falava apoiada no Espírito Santo e na sua consciência, exclama: Tenho no coração uma grande tristeza e uma dor contínua a ponto de desejar ser eu mesmo segregado de Cristo em favor de meus irmãos, os de minha raça (Rm 8,2-3).
Admirável a disposição de Paulo! Aprendeu muito bem o exemplo do Mestre que, ao contrário de vangloriar-se de sua condição divina, fez-se maldição por nós (Gl 3,13), afim de resgatar-nos para o Pai. Assim, também Paulo, levado pela sua grande estima pelo seu povo, está disposto a ser anátema, isto é, maldito, separado de Cristo, riscado do livro da vida (Cf. Ex 32,32), contanto que seu povo, Israel seja salvo, isto é, participe da filiação divina que lhes foi merecida por Cristo crucificado.
Conclusão
Num mundo e num momento em que temos de viver mergulhados em violências de todo tipo, interiores e exteriores, vem muito a propósito a mensagem deste domingo: crer que no meio, isto é, na raiz de todas elas, está a Suavidade que é Deus. Um Deus que não é uma ideia, uma doutrina, uma imagem ou fantasia, mas uma pessoa que se constitui o fundo, a raiz, o princípio vital, o sentido maior, único de toda a caminhada, de toda a história ou viagem da humanidade, principalmente da Igreja (Cf. EG 7-8). É este Deus-Suavidade que, a exemplo dos apóstolos na barca ameaçada pela tempestade, está sempre vindo ao nosso encontro para dizer-nos: Estou aqui. Não tenhais medo. Sou Eu.
É este Deus que no Natal podemos contemplar como Menino deitado no meio do feno, da vaca e dos bois, na Sexta-feira santa como o Crucificado em meio aos malfeitores, como também no pedacinho de pão que é comido e num pouquinho de vinho que é bebido por todos, santos e pecadores, sem medo, na Eucaristia.
Bela experiência deste mistério encontramos em São Francisco. Em sua estadia em Rieti, sofrendo muito por causa da doença dos olhos, pediu a um companheiro, versado na cítara, que compusesse alguns versos a fim de que proporcionasse algum alívio ao irmão corpo cheio de dores. Como isto não fora possível, na noite seguinte, estando o Santo acordado e a meditar em Deus, soou de repente uma cítara de admirável harmonia e suavíssima melodia. Não se via ninguém, mas dava para perceber, pela facilidade do ouvido, que o citaredo estava andando para lá e para cá. Afinal, com o espírito diretamente em Deus, o santo pai provou tanta suavidade com aquela doce música, que parecia ter sido transferido para outro mundo. Quando se levantou de manhã, o Santo chamou o frade de quem falamos acima, contou-lhe tudo em ordem e disse: “O Senhor, que consola os aflitos, nunca me deixou sem consolação. Eis que, não podendo escutar as cítaras dos homens, acabei ouvindo outra muito mais suave” (2C 126).
Por isso, diante de tão admirável e consolador mistério, Francisco não cessava de exortar seus Irmãos: Por isso, nada desejemos, nada queiramos, nenhuma outra coisa nos agrade e nos deleite, a não ser o nosso Criador e Redentor e Salvador, único verdadeiro Deus: Ele é o bem pleno, todo o bem, o bem inteiro, o verdadeiro e sumo bem. Só Ele é o bom, o piedoso, o manso, o suave e o doce. Só Ele é o santo, o justo, o verdadeiro, o santo e o reto. Só Ele é o benigno, o inocente, o puro. (RNB 23,9).
Fraternalmente,
Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini, ofm
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