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Leituras: Is 55,1-3; Rm 8,35.37-39; Mt 14,13-21

Tema-mensagem: Uma compaixão que cura todos os doentes e um pão que sacia a fome de todos os famintos.


Introdução

Doenças e fome, doentes e famintos, duas experiências que perpassam e angustiam a história dos homens em todos os tempos. Como entendê-los? Como conduzir-nos diante deles? Quem vai cuidar e tratar desses flagelos? Eis o mistério no qual as leituras de hoje, procuram introduzir-nos, principalmente o Evangelho da multiplicação dos pães.


1. A promessa de uma satisfação completa (Is 55,1-3)

A primeira leitura de hoje, faz parte do quarto poema de Isaías que tem como tema a gratuidade do amor e a glória de Jahvé que se manifestará com a libertação do povo do exílio babilônico de sua vergonhosa escravidão. Será, então um novo êxodo e com ele o surgimento de uma nova Jerusalém tão fecunda cujas dimensões se expandirão até os confins do mundo. Tudo isto, diz o Senhor, provém de mim (Is 54,17).

Vem então este generoso convite: Oh! Vós todos que tendes sede, vinde às águas! Mesmo que não tenhais dinheiro, vinde! Comprai cereais e comei! Mesmo sem dinheiro ou pagamento, vinde beber vinho e leite! (Is 55,1).

O profeta, por ser um homem de Deus, vivendo em profunda comunhão e intimidade com Ele e com seu desígnio, vê tudo como Ele vê e sente; vê, até à raiz, o sentido dos acontecimentos e das pessoas, um sentido que está para além do tempo e do espaço.

Isaías, estava no meio de uma multidão de israelitas, repatriados; gente que, sem um vintém no bolso, suspiravam pelo dia em que de novo teriam uma mesa farta, cisternas cheias de água. É então que ele – o profeta - é convidado a emprestar sua voz à terna e promissora palavra do Senhor: Ouvi-me com atenção e alimentai-vos bem, para deleite e revigoramento do vosso corpo. Inclinai vosso ouvido e vinde a mim, ouvi e tereis vida: farei convosco um pacto eterno, manterei fielmente as graças concedidas a Davi (Is 55,2-3).

Isaías, porém, sensibilizado com tudo o que estava acontecendo, vê não apenas os judeus e os pagãos, mas todos os famintos e sedentos de todos os tempos e de todos os povos, sendo convidados para o grande banquete escatológico. Por isso, na Bíblia, o banquete nupcial é sempre a imagem preferida para expressar a profunda degustação do amor de Deus, de sua presença e convívio, que se dará no fim ou consumação de todos os tempos.

A única exigência é a aceitação livre. Daí a insistência amorosa de Deus: “Vinde!”, “Apressai-vos!”, “Vinde e comei, vinde comprar sem dinheiro, tomar vinho e leite sem nenhuma paga!”, “ouvi-me”, “inclinai vosso ouvido, vinde a mim, vinde e tereis vida!” Aí – nesta palavra do Senhor que se faz compaixão, misericórdia, aliança e que, enfim, se fará, posteriormente, homem – é que está ou é a fonte da vida, chamada de “vida eterna”, “vida em Deus”.

A liberdade física, ou política e social, dos exilados era um ótimo indício para pensarem na busca da libertação de todas as escravidões, resumidas na escravidão do pecado, isto é, na escravidão do egocentrismo que leva ao esquecimento, afastamento e abandono do banquete de amor de Deus.

Era preciso, portanto, ouvir o que o Senhor lhes dizia. Pois, só assim, sua palavra, à semelhança da chuva, que só retorna ao céu depois de ter fecundado a terra, não retornará a Ele sem antes ter produzido o efeito de sua bondade e amor. Sua palavra significa seu plano de congregar e reunir todos os homens e criaturas ao redor de seu amor, mais tarde, com Cristo, expresso, de modo admirável no banquete eucarístico.

2. Jesus, o verdadeiro médico dos enfermos e o verdadeiro pão dos famintos (Mt 14,13-21)

O fato de todos os evangelistas, de modo próprio e diferenciado, tratarem do milagre da multiplicação dos pães revela que este milagre ocupa um lugar de destaque na mensagem de Jesus. A narrativa de Mateus se dá logo após a decapitação de João Batista por parte de Herodes. Estaria Mateus insinuando que este será o destino também de Jesus, o Messias anunciado pelo Batista, que, na Cruz, oferecerá sua via em sacrifício pela salvação da humanidade toda, sacrifício este que se tornará o coração de toda a Eucaristia?

Mas, como ainda não chegara sua hora, ou quem sabe, por certo medo, através de uma barca, Jesus se retirou para um lugar deserto para rezar. Quando desembarcou, porém estava rodeado de uma grande multidão de famintos e cheia de doentes.


2.1. Jesus vê e se compadece

A experiência da doença, da fome e da busca de remédios, médicos e de pão para sanar estes males perpassa toda a história do Antigo Testamento. Como não recordar, por exemplo, o maná do deserto, descido milagrosamente do céu, bem como o milagre de Elias multiplicando a farinha na casa da viúva de Sarepta (1Rs 17), etc? Ora, Mateus é o evangelista que se sente chamado a evangelizar os judeus. Por isso, como em muitos outras passagens, também aqui, ele tem em mira mostrar que Jesus é o Messias prometido; que em Jesus todas as promessas se tornaram realidade, que os tempos messiânicos da fartura de bens anunciados outrora pelos profetas e tão ardorosamente desejados pelo povo, chegaram. Era preciso olhar para Jesus e acolhê-lo com fé e amor. Por isso, ele faz questão de acentuar que Jesus vendo aquela multidão moveu-se de compaixão para ela e curou seus doentes (Mt 14,14).

Diferentemente do Deus do Antigo Testamento, Jesus é a revelação do Deus próximo, familiar, amigo que vê, se compadece e cuida. Todos os milagres de Jesus, bem como o seu chamado começam com o olhar: Jesus olhou e viu cada um dos seus apóstolos e os chamou. A graça do encontro começa com a graça do ver, do sentir. Aqui, evidentemente, não se trata do olhar físico-biológico, que vê e fixa tudo, indiferentemente, mas que, por isso, na verdade, nada vê. Jesus veio substituir o olhar da indiferença, do desprezo, da soberba, às vezes, até do ódio, da vingança dos fariseus de todos os tempos; o olhar capitalista e explorador que só pensa nos lucros e nas vantagens pessoais dos homens do mundo pelo olhar do Pai: um olhar de compaixão, de respeito, admiração, contemplação, humildade e, acima de tudo, de irmandade. Quem se converte para o olhar do Pai como Jesus, aos poucos verá o próprio Jesus, verá Deus em cada uma de suas criaturas, principalmente nas doentes e famintas.

Esta conversão, porém, não é fácil. É preciso implorá-la de joelhos, chorando, como fez São Francisco diante dos leprosos. Por isso, depois, em seu Testamento, agradecido, exclama: foi assim que o Senhor me deu a graça não só de olhar com prazer para os leprosos, mas até de viver com eles (T 1)

2.2. Jesus sacia a fome dos famintos

Vem, então, o milagre da multiplicação dos pães. A cena se desenrola ao cair da tarde, uma nítida referência à tarde da última ceia. Ou seja, o milagre da multiplicação dos pães é, na verdade, uma catequese da Eucaristia, o mistério da multiplicação do amor de Deus – Jesus, o Pão vivo descido do céu - no coração dos homens, isto é, Aquele que preenche todas as necessidades do homem, principalmente a necessidade de amar e de ser amado. Por isso, dizia o próprio Jesus: Não só de homem vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus.

Pois bem, naquela tarde, os discípulos se aproximaram de Jesus e lhe disseram: “Este lugar é deserto e a hora já está adiantada. Despede as multidões, pra que possam ir aos povoados comprar comida”.

Enquanto, na narrativa de João a iniciativa de resolver o problema da fome foi de Jesus, aqui é dos discípulos. O contraste, porém, é enorme. Enquanto Jesus se compadece, estes estão chateados, incomodados com a presença daqueles doentes e esfomeados. É melhor que desapareçam, que se virem: “O que temos nós a ver com eles, e com esta sua situação?” Se Jesus os vê e olha, eles não querem vê-los. Dão-lhes as costas.

Jesus, porém, é categórico: Eles não precisam ir embora. Dai-lhes vós mesmos de comer (Mt 14,16). Recordemos que esta era uma das exigências da participação na Eucaristia: contribuir, colaborar com a oferta, a entrega de bens não apenas para a santa Ceia, mas também para a distribuição entre os pobres e necessitados. O problema dos discípulos continua hoje. Se os países e homens ricos de hoje atendessem a esta ordem não teríamos o triste quadro de ver todos os dias, multidões e multidões de pobres, famintos, doentes e forasteiros batendo às portas de nossas casas.

O gesto de Jesus, narrado por todos os evangelistas, atravessa a história e acompanha a caminhada da Igreja para recordar-nos que nós católicos, cristãos, não podemos fazer jus a este nome, alimentando-nos tranquilamente com a mesa farta do pão nosso de cada dia, permanecendo em nosso zona de conforto, sem olhar para as multidões de doentes e famintos que nos cercam. Por isso, a Igreja do Brasil, atenta a esta ordem de Jesus aos seus discípulos desde 1962 vem realizando cada ano a “Campanha da Fraternidade”. Seu principal objetivo é, justamente despertar em seus fiéis e na sociedade em geral a consciência da necessidade de uma conversão evangélica voltada para a solidariedade com os mais esquecidos, abandonados, injustiçados, famintos e marginalizados. O Amor repartido na mesa, no altar da eucaristia, não pode deixar de ser repartido em todas as mesas, isto é, em todos os grupos da Igreja e da sociedade humana.

Como todos os milagres, também este se reveste de um sentido sumamente teológico: o mistério da encarnação, morte e ressurreição de Jesus, se torna assim o verdadeiro pão da Vida e que é celebrado na eucaristia, tão bem manifesto no texto: Jesus mandou que as multidões se assentassem na grama. Então pegou os cinco pães e dois peixes, ergueu os olhos para o céu e pronunciou a bênção. Em seguida partiu o pão e os deu aos seus discípulos (Mt 14,19).

A intenção da narrativa é muito clara: fazer-nos entender o que é a Eucaristia que Jesus instituiu na Última Ceia.

Provavelmente, é também por esta razão que Mateus menciona a retirada de Jesus para um lugar solitário. Deste retiro ele sai para curar os doentes e alimentar miraculosamente os famintos. E uma vez realizado o milagre, nascido do vigor de seu retiro ou encontro com o Pai, sobe sozinho ao monte para rezar (Cf. Mt 14,23). Pode-se ver aqui uma referência ao exercício do sumo sacerdote judaico que uma vez por ano se retirava sozinho para o Santo dos Santos e após ter oferecido os sacrifícios prescritos voltava para abençoar o povo. Assim, Jesus é apresentado como o verdadeiro sumo sacerdote da nova Aliança que veio para curar, abençoar e alimentar o seu Povo com o Pão do seu Amor, de sua doação. Enfim, uma comunidade messiânica, como é a Igreja, que tem como fundamento a presença do Messias, não pode jamais deixar de ver, olhar para seus enfermos e famintos, não pode deixar de compadecer-se deles encetando todos os esforços e todas as medidas possíveis para curá-los e libertá-los de suas fomes.

3. Jesus Cristo um amor inquebrantável (Rm 8,35.37-39)

A segunda leitura tirada da Carta aos Romanos, proclamada hoje, começa com uma série de interrogações: Quem nos separará do amor de Cristo? Tribulação? Angústia? Perseguição? Fome? Nudez? Espada?

Num primeiro momento poderíamos pensar em nossas tribulações, e está correto. Mas, desde o mistério da Encarnação não há mais nada nosso que não seja de Cristo como também não há mais nada que é de Cristo que não seja nosso. Por isso, desde então, nossas tribulações estão batizadas nas ou com as tribulações de Cristo. Daí a sábia e jubilosa conclusão de Paulo: Em tudo isso, nós somos mais que vencedores, graças Àquele que nos amou (Rm 8,37).

Por isso, poderíamos dar como título a este pequenino trecho de: a jubilosa decantação ao amor inquebrantável de Jesus Cristo. É sobre este amor que se assenta e cresce nossa fé, nossa adesão a Cristo e a toda a sua obra.

Amor e fé, aqui se identificam, pois apontam para uma submissão total e absoluta um ao outro, tendo como fundamento a submissão total de Cristo à vontade do Pai quando na Cruz exclamou: Pai nas tuas mãos eu entrego o meu espírito.

Daí a grande conclusão de Paulo: Tenho certeza de que nem a morte, nem a vida... nem outra criatura qualquer, será capaz de nos separar do amor de Deus por nós, manifestado em Cristo Jesus, nosso Senhor (Rm 8,38-39).

Assim, o que Deus Pai fez com seu Filho amado o repete com cada um de nós. Se o sustentou em todas as suas tribulações e na própria morte, também haverá de fazer o mesmo com cada um de seus eleitos. Eis nossa fé. Assim, mesmo imperfeitos, falhos e infiéis, Ele que não permitiu que seu Filho amado fosse abandonado à morte também não poderá jamais permitir que sejamos vencidos ou derrotados. Se Cristo foi vencedor também seremos vencedores. Para isso basta crer, confiar ou como Cristo, proclamar: Pai, nas tuas mãos eu entregou o meu espírito. Não se faça a minha vontade, mas a vossa.

Conclusão

A celebração eucarística sempre teve como coração a paixão, ou melhor a compaixão do Senhor transformada em ato: a cruz. Por isso, também todos os seus participantes ou celebrantes se associavam a este sentimento, ofertando parte de seus bens para o sustento das viúvas pobres e doentes. Falando deste sentimento assim se expressa o Texto base da Campanha da Fraternidade de 2020:

Ser capazes de sentir compaixão: essa é a chave. Essa é a nossa chave. Se, diante de uma pessoa necessitada, você não sente compaixão, o seu coração não se comove, significa que algo não funciona. Fique atento, estejamos atentos. Não nos deixemos levar pela insensibilidade egoística. A capacidade de compaixão se tornou a medida do cristão, ou melhor, do ensinamento de Jesus (Texto Base da CF 2020).

A seguir o mesmo documento continua com esta bela e forte aplicação do Papa Francisco:

Discursando aos párocos da Diocese de Roma sobre o significado da misericórdia para um presbítero, o Papa Francisco apresenta a proximidade, a afinidade e o serviço como critérios para a ação pastoral. Atitudes que nascem de uma autêntica escuta nos questionam sobre a compaixão que habita em nossos corações e é expressa em nossas atitudes. Interpela-nos o Santo Padre: “Tu choras? Ou perdemos as lágrimas. Recordo que os missais antigos continham uma oração extremamente bonita para pedir o dom das lágrimas. A oração começava assim: ‘Senhor, vós que confiastes a Moisés o mandato de bater na pedra para que dela brotasse água, bate na pedra do meu coração, para que eu verta lágrimas. (...) quantos de nós choram diante do sofrimento de uma criança, perante a destruição de uma família, diante, diante de tantas pessoas que não encontram o seu caminho?” (idem).


Fraternalmente,

Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini, ofm

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