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Liturgia da Palavra: Eclo (Sirac) 3, 3-7.14-17ª; Sl 127 (128); Cl 3,12-21; Mt 2,13-15ª.16ª.

Tema-Mensagem: A encarnação do Verbo numa família humana, em Nazaré, comove, com a sua novidade, a história da humanidade (Papa Francisco)

Sentimento: gratidão e alegria


Introdução:

Logo após, ou melhor, dentro da solenidade do Natal, celebramos hoje a festa, o mistério da “Sagrada Família de Jesus, Maria e José”. Esta, a família humana, é a primeira realidade na qual Cristo quer encanar-se para assim possibilitar que Deus realize o sonho tão desejado, desde toda a eternidade: experimentar a riqueza de poder amar e ser amado como criatura humana finita, limitada... experiência que, como Deus, lhe seria impossível.


1. O mandamento de os filhos honrarem os pais (Eclo (Sirac) 3, 3-7.14-17ª)

Quem nos introduz no mistério desta festa é um pequeno texto tirado do livro do Eclesiástico. O autor revela mui explicitamente sua intenção: explicar aos filhos já adultos a importância, a riqueza e os benefícios da observância do quarto mandamento da Lei mosaica: honrar pai e mãe (Ex 20,12). Mas, antes, faz questão de dar a razão deste mandamento: “Deus honra os pais nos filhos e confirma sobre eles a autoridade da mãe”.

O autor do Eclesiástico, gosta de mostrar que os homens têm nas relações familiares um campo muito propício para se praticar o amor e a dedicação a Deus. Mais adiante mostrará este amor e esta dedicação falando dos deveres dos pais na educação dos filhos (Eclo 30, 1-13; 42,9-14). Mas, aqui, trata dos benefícios que advém para os filhos que cumprem o quarto mandamento: “Quem honra seu pai, alcança o perdão dos pecados; evita cometê-los e será ouvido na oração quotidiana. Quem respeita a sua mãe é como alguém que ajunta tesouros”.

Dois aspectos importantes para o autor do Eclesiástico. Primeiramente, o direito paterno dos pais sobre os filhos mais que uma lei da natureza é de ordem divina. Por isso este direito será sempre derivado, dependente de Deus, sempre relativo, jamais absoluto.

Além do mais ele sempre associa à autoridade do pai também a da mãe. O Antigo Testamento é muito pródigo em associar o dever dos filhos à honra do pai também à honra da mãe: “Honra teu pai e tua mãe para que se prolonguem os teus dias no país que te dará o Senhor teu Deus” (Ex 20,12). Quem segue esta ordem, diz o Eclesiástico, “é como alguém que ajunta tesouros”. Tesouros, aqui são as boas obras, os bons atos que sempre carregam em si mesmos sementes – fontes - de bem que um dia ou outro, cedo ou tarde, haverão de frutificar.


2. Jesus o novo e verdadeiro Moisés e a Igreja o novo e verdadeiro Povo de Deus (Mt 2,13-15.19-23)

Para o ciclo do Ano A, a Igreja celebra a festa da Sagrada Família proclamando e ouvindo o Evangelho a fuga da Sagrada Família para o Egito. Escrevendo, principalmente para os cristãos judeus, Mateus, o único evangelista a narrar este evento, tem em mente fortalecer a fé dos cristãos vindos do judaísmo. Para isto procura mostrar-lhes que Jesus é o novo e verdadeiro Moisés; que, como este, também Jesus foi perseguido e ameaçado de morte ainda criança e que teve de fugir, com sua família, para o Egito, e que, finalmente, Ele também teve de fazer o seu êxodo, etc. Enfim, tudo o que fora anunciado pelos profetas e prometido pelo Senhor através da história dos seus antepassados, referente ao futuro Messias, se realiza e se consuma em definitivo e em plenitude com e em Jesus. Ele é o novo Moisés.

O mesmo diga-se da Igreja: ela é o novo e verdadeiro Israel, o novo Povo de Deus. Por isso, dentro desta lógica, ele começa o trecho de hoje assim: Depois que os magos partiram, o Anjo do Senhor apareceu a José e lhe disse: “Levanta-te, pega o menino e sua mãe e foge para o Egito”.

O trecho vem marcado pelo protagonismo do anjo, que por duas vezes, aparece a José – o curador da sagrada família e patrono da Igreja - em forma de Sonho. É ele que orienta tanto a fuga da família para o Egito bem como o seu retorno para as terras de Israel. Assim, o que se disse da relação de Jesus com Moisés, pode-se e deve-se dizer também da Sagrada Família com o antigo Povo de Deus. Ou seja, o antigo Povo de Deus se realiza e se consuma agora na e pelo novo Povo se Deus, a Igreja, da qual a Sagrada Família se apresenta como a primeira célula ou melhor como célula mãe.

Mergulhando neste mistério da família de Nazaré e sua história, muitas são as lições que merecem nossa atenção. Vamos ater-nos apenas a duas que valem tanto para a Igreja como para a família, a primeira Igreja ou a Igreja doméstica.

A primeira, é a marca de peregrinas, forasteiras. Nada podem possuir como definitivo, pronto, terminado, concluído. Tudo, sempre de novo, cada dia, deve ser procurado e vivido como provisório, ainda não alcançado. Toda a vez que se queira estabelecer em definitivo um modelo ou padrão já alcançado de Igreja ou família, por mais perfeitos que sejam, está se atrasando e impedindo que o reinado – a Boa Nova da intimidade, da familiaridade de Deus - avance. Todos os avanços ou graus de perfeição já alcançados ou experimentados serão sempre apenas um prenúncio do sagrado convívio que se realizará em plenitude só no fim dos tempos. A pátria, a Igreja, a família definitivas serão sempre um porvir. Precisam ser construídas, aos poucos, nos afazeres do seu cotidiano.

A outra marca é a da presença de Deus representada pela figura do anjo. Esta é a Boa Nova da Encarnação: o Deus-conosco, com nossa história. Isso significa que nenhuma Igreja, nenhuma família está abandonada ao seu bel prazer. O mesmo anjo que, em nome de Deus, marcou presença no mistério da encarnação, aparece acompanhando o novo e definitivo êxodo rumo a pátria definitiva, agora da Igreja e da família. Por isso, a Igreja sempre se considerou a si, como também a família, um sacramento, isto é, uma obra cujo protagonista não são os fiéis, muito menos os eclesiásticos e os esposos com seus filhos, mas Deus. É da presença deste mistério que nasce e floresce a Igreja e a família. Jesus, o Sol Nascente, com sua luz própria, a Igreja, a família, chamadas a fazer reluzir a luz Daquele Sol em meio as trevas deste mundo.

Quem nos fala, de modo bem concreto, deste princípio é nosso Papa em sua encíclica Amoris Laetitia. Depois de recordar-nos do mistério da inabitação de Deus no coração de cada pessoa, assim se expressa: Hoje podemos dizer também que a Trindade está presente no templo da comunhão matrimonial. Assim como habita nos louvores do seu povo (cf. Sl 22/21, 4), assim também vive intimamente no amor conjugal que Lhe dá glória (AL 313).


3. A Carta magna de São Paulo acerca do matrimônio e da família (Cl 3,12-21)]

Na segunda leitura de hoje, o apóstolo Paulo, depois de haver elencado um conjunto de vícios nos quais o homem velho se deforma, nos apresenta como que a Carta magna da vida matrimonial e familiar dos homens e mulheres novos, isto é, renovados na Boa Nova da Humanidade de Deus (encarnação).

3.1. Acima de tudo amai-vos uns aos outros

Paulo, começa por apresentar o fundamento de toda a vida matrimonial e familiar: “Vós sois amados por Deus, sois os seus santos eleitos”. Se esta é a realidade, a verdade mais verdadeira de cada um dos membros de uma família, a partir dos esposos, segue, então, logicamente, esta exortação: “Por isso, revesti-vos de sincera misericórdia, humildade, bondade, mansidão e paciência, suportando-vos uns aos outros e perdoando-vos mutuamente... Mas, acima de tudo, amai-vos uns aos outros, pois o amor é o vínculo da perfeição” (Cl 3,12-15).

Suportar é ser suporte, apoio para o outro. Só quem ama pode dar importância ao outro e tomar para si o seu peso e carregá-lo. O amor torna todo o peso suave e todo o jugo leve. É o que arremata o perfazer-se do cristão em seu caminho pela vida; o laço que conjuga o todo da vida cristã: o vínculo da perfeição.

O Matrimônio cristão, assim como o celibato apostólico e evangélico, é “por causa do Reino dos Céus”. Por isso, não tem outro princípio e outra lei do que o Amor-Caridade-doação-entrega: “Amai-vos uns aos outros. Como eu vos amei, também vós deveis amar-vos uns aos outros” (Jo 13, 34). Este mandamento é incumbência e é graça. Por isso, bem no coração e na essência do rito do sacramento do matrimônio os noivos proclamam e declaram: ”Serei teu/tua na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, amando-te e respeitando-te todos os dias de minha vida”.

Como as demais vocações, também o casamento, portanto, é fruto da graça e da alegria do encontro, do enamoramento, tão bem decantado pelo Cântico dos Cânticos: “Como és bela, minha amada, como és bela! São pombas teus olhos escondidos sob o véu... roubaste meu coração. Minha irmã, minha noiva, roubaste meu coração com um só dos teus olhares... Que belos são teus amores...” (Ct 4). E conclui o poeta sagrado: “O amor é forte, é forte como a morte… Águas torrenciais não conseguirão apagar o amor, nem rios poderão afogá-lo. Se alguém quisesse comprar o amor com todos os tesouros da sua casa, receberia somente desprezo” (Ct 8,6s).

A graça deste tesouro da graciosidade e da gratuidade do amor, porém está em nós em forma de semente. Daí a afirmação do Papa Bento XVI em sua encíclica Deus Caritas est: “Somente quando ambos (corpo e alma) se fundem verdadeiramente numa unidade é que o homem se torna plenamente ele próprio. Só assim é que o amor pode amadurecer até sua verdadeira grandeza”. Na mesma encíclica, o Papa insiste em mostrar a beleza e a grandeza do matrimônio: recriar o Amor que é Deus na família, na igreja, no mundo. Por isso, fala que o amor erótico é também o de Deus por nós: Deus assume a natureza humana para amá-la e ser amado.

Fruto do mistério da gratuidade e da gratuidade do mistério, porém, o amor nunca se impõe. Por isso, sua aparição será sempre na fragilidade. Assim, como Jesus no Natal se reveste e se sustenta na força da não-força - que é a pura gratuidade do amor que é o Pai, a misericórdia - também o homem e a mulher que se unem em matrimônio se entregam nas mãos de Deus, fonte do amor e da vida num “sim” recíproco, generoso e total. Deus se alegra com júbilo ao ver o seu “Sim” ser assumido pelo “sim” dos esposos tornando-os instrumentos de seu querer benevolente para com os humanos. Deus diz realmente, e com incrível condescendência, sim para vosso sim; mas, enquanto Ele fizer assim criará ao mesmo tempo algo totalmente novo: Ele cria do vosso amor – o santo matrimônio (D. Bonhoeffer)[1].

O matrimônio é mais do que o amor conjugal uma vez que o casal deixa de mirar apenas a própria felicidade terrena, e eles passam a ser postos como responsáveis pelos homens, cuidadores deles, na grande família do Pai eterno. Como obra da graça, não é o amor que sustenta o matrimônio, mas, ao contrário, este, o matrimônio é que sustenta o amor conjugal. E Deus se faz fiador do matrimônio comprometendo-se a guardá-lo contra todo o poder do mundo, contra toda a tentação, toda a fraqueza humana. Basta que o casal a Ele se confie, deixe-se guiar por Ele, na abertura da obediência da fé, como fizeram Maria e José ao longo de toda a sua missão de pais deste Menino misterioso. Assim, o casal cristão pode dizer: nós não podemos mais ser perdidos um ao outro, nós pertencemos um ao outro pela vontade de Deus até morrer (idem).

3.2. Diferentes na unidade e unidos na diferença

O matrimônio cristão é uma comunhão “no Senhor”, assim expresso pelo Apóstolo Paulo: Esposas, sede submissas aos vossos maridos, como convém no Senhor. Maridos, amai as vossas esposas e não as trateis com aspereza (Cl 3,18-19). Este modo de dizer “no Senhor” resume tudo. Homem e mulher são iguais e são diferentes. São de uma mesma essência. Por isso é que Adão, no livro do Gênesis, diz: “Eis, desta vez, o osso dos meus ossos e a carne da minha carne! Ela se chamará humana, pois do humano foi tirada” (Gn 2, 23). Em razão desta identidade de essência são iguais em dignidade. É por isso que o relato do Gênesis diz que a mulher foi criada da costela de Adão, não de seus pés nem de sua cabeça, isto é, para andar lado a lado com o homem, como sua companheira.

A partir desta identidade e igualdade essenciais é que as suas diferenças são acolhidas como riquezas que se compõem numa unidade: Por isso o homem deixa seu pai e sua mãe para ligar-se à sua mulher, e se torna uma só carne (Gn 2, 24). Com esta união, cria-se um lar, uma família, uma fraternidade. Neste lar, estabelece-se, então, a difícil tensão e o difícil equilíbrio da vida, em que as diferenças precisam ser sempre acolhidas na identidade e na igualdade, e a pluralidade na unidade do amor.

O desafio é que se encontrem o homem humano e a mulher humana como companheiros na viagem, que é a experiência da vida. Assim, em meio aos maiores desafios – o maior dentre eles a maternidade virginal de Maria - caminharam Maria e José, como companheiros, homem humano e mulher humana. E é bem isto que a encarnação de Cristo veio nos ensinar: sermos homens humanos e mulheres humanas.

“No Senhor”, os cônjuges cristãos têm a graça de serem companheiro e companheira um para o outro. Por isso, o mútuo serviço no amor nasce da humildade e não da subjugação de um pelo outro. Assim também, pais servem aos filhos e estes aos pais. Assim, o “como Eu vos amei, amai-vos uns aos outros” se põe como lei régia do matrimônio e da família que compartilha a vida comum “no Senhor”.


Conclusão

“A Bíblia, em suas inúmeras páginas, vem recheada de famílias, gerações, histórias de amor e de crises familiares, desde as primeiras páginas onde entra em cena a família de Adão e Eva, com o seu peso de violência, mas também com a força da vida que continua (Cf. Gn 4), até às últimas páginas onde aparecem as núpcias da Esposa e do Cordeiro” (Cf. Ap 21, 2.9) (AL).

Seja de que tamanho, origem, status ou forma for, no centro, de toda família, encontramos o casal formado pelo pai e a mãe com toda a sua história de amor. Neles se realiza aquele desígnio primordial que o próprio Cristo evoca com decisão: «Não lestes que o Criador, desde o princípio, fê-los homem e mulher?» (Mt 19, 4). E retoma o mandato do livro do Génesis: «Por esse motivo, o homem deixará o pai e a mãe, para se unir à sua mulher; e os dois serão uma só carne» (Gn 2, 24) (AL 9). Por isso, o casal que ama e gera a vida é a verdadeira «escultura» viva (não a de pedra ou de ouro, que o Decálogo proíbe), capaz de manifestar Deus criador e salvador (idem).

Continuando sua meditação acerca do mistério da Sagrada Família em Nazaré, diz ainda nosso Papa que precisamos penetrar nos trinta anos em que Jesus ganhava o pão com suas mãos, sussurrando a oração e a tradição crente de seu povo e formando-Se na fé dos seus pais até fazê-la frutificar no mistério do Reino. Este é o mistério do Natal e o segredo de Nazaré, que enche de perfume a família. É o mistério que tanto fascinou Francisco de Assis, Teresa do Menino Jesus e Charles de Foucauld, e do qual bebem também as famílias cristãs para renovar a sua esperança e alegria (AL 65).

E arremata nosso Papa: A aliança de amor e fidelidade, vivida pela Sagrada Família de Nazaré, ilumina o princípio que dá forma a cada família e a torna capaz de enfrentar melhor as vicissitudes da vida e da história. Sobre este fundamento, cada família, mesmo na sua fragilidade, pode tornar-se uma luz na escuridão do mundo. “Aqui se aprende (…) uma lição de vida familiar. Que Nazaré nos ensine o que é a família, a sua comunhão de amor, a sua austera e simples beleza, o seu caráter sagrado e inviolável; aprendamos de Nazaré como é preciosa e insubstituível a educação familiar e como é fundamental e incomparável a sua função no plano social (Paulo VI, Alocução em Nazaré, 5 de Janeiro de 1964)».(AL 66)

Oxalá a Festa de hoje, ajude pai, mãe e filhos a descobrirem que a ALEGRIA DO AMOR que vivem nas famílias é também o júbilo da Igreja; que apesar dos numerosos sinais de crise no matrimónio, «o desejo de família permanece vivo, especialmente entre os jovens; que «o anúncio cristão sobre a família é verdadeiramente uma boa notícia» (AL 1).


Fraternalmente,

Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini, ofm

[1] “Sermão da cela para um casamento”. Em: Resistência e Submissão, p. 39 ss.

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