Carta dos Ministros Gerais para a Solenidade de Santa Clara e os 800 anos do cântico Audite Poverelle
- freifranklinofm
- 5 de ago.
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Atualizado: 31 de ago.
Às Irmãs da Ordem de Santa Clara
da Ordem de Santa Clara Urbanistas
das Clarissas Capuchinhas
Caríssimas Irmãs Pobres de Santa Clara,
Que de muitas partes e províncias sois congregadas,
Nós, os Ministros Gerais franciscanos, desejamos que
O Senhor vos dê a Sua Paz!
Neste Ano Santo de 2025, celebramos não apenas o oitavo centenário da composição do Cântico das Criaturas, mas também daquelas “palavras com melodia para as Pobres Damas de São Damião”, conhecidas como Ouvi, pobrezinhas, que São Francisco compôs “para a sua maior consolação”1, no inverno de 1225. Os dois textos são singularmente próximos no tempo e na experiência de vida de Francisco. Podemos dizer que quase se entrelaçam e se iluminam mutuamente.
Dada a importância desse acontecimento para toda a Família Franciscana- e ainda mais para vós-, nós, Ministros Gerais Franciscanos, nos dirigimos a todas vós em conjunto, “com grande amor”, oferecendo-vos algumas chaves de reflexão inspiradas nas próprias palavras de Francisco, convencidos de que, mesmo depois de 800 anos, elas conservam toda a sua força e permanecem profundamente relevantes para a vossa vida contemplativa franciscano-clariana de hoje.
“Ouvi, Pobrezinhas, pelo Senhor chamadas”: a vossa identidade
Com as duas primeiras palavras que dão nome a todo o poema, Francisco, como um pai amável e um sábio mestre, convida as Irmãs de São Damião a escutar, isto é, a acolher profundamente, no íntimo do próprio coração, as palavras com as quais “quis manifestar a elas brevemente a sua vontade, no momento presente e sempre”2. E a primeira vontade de Francisco foi a de confirmar a identidade de Clara e de suas irmãs: a de “Pobrezinhas”, chamadas e geradas pelo Pai na Igreja “para seguir a pobreza e a humildade do seu amado Filho e da Virgem, sua gloriosa Mãe”3. “Pobrezinhas” é, portanto, uma expressão que exprime bem a vossa identidade mais profunda, que “sintetiza admiravelmente um estilo de vida, um modo de estar diante de Deus e na Igreja”4; é, portanto, “a essência da vossa Forma de Vida, apaixonadamente vivida e defendida por Clara durante toda a sua vida. E é esta a vossa identidade: a de Irmãs Pobres” cujo “verdadeiro mosteiro é a humanidade do Senhor Jesus pobre e humilde”5; mulheres totalmente dedicadas a Deus na contemplação, que se caracterizam, sobretudo, por uma vida de humildade e pobreza vividas em fraternidade, que hoje deve ser cada vez mais plenamente recuperada e refletida na vida de cada irmã, de cada comunidade e de cada uma de vossas Ordens. A isto, pelo Senhor, vós sois chamadas!
“Que de muitas partes e províncias sois congregadas”: a santa unidade
Desde os primórdios, a comunidade de São Damião acolheu mulheres- nobres ou não- não apenas de Assis, mas também de várias outras regiões6. Entre elas, havia irmãs de culturas muito diferentes, como testemunham as correspondências de Clara com Inês de Praga e Ermentrude de Bruges. Assistimos hoje com maior evidência a uma transformação das nossas Ordens e das vossas em comunidades, sempre mais internacionais e multiculturais. Em uma simples comunidade ou Federação, convivem agora irmãs de diferentes regiões de uma mesma nação, de países diversos, com origens étnicas e culturais variadas e provenientes de contextos sociais heterogêneos. Essa diversidade constitui, antes de tudo, um dom precioso, pois enriquece a expressão do carisma comum, que, enraizado no Evangelho, é tão vasto e profundo que não pode ser plenamente manifestado por meio de uma única perspectiva cultural. Contudo, essa realidade representa também um significativo desafio, que nos convida a um acolhimento recíproco e profundo, à integração de nossas diferenças e à superação de prejuízos que, por vezes, nos influenciam mesmo sem que tenhamos consciência disso. Além disso, nos impulsiona a um discernimento atento, para avaliar constante mente quantos e quais elementos culturais específicos estão em harmonia com a mensagem evangélica. Portanto, é importante nunca deixar de buscar e conservar, em todos os níveis, a “santa unidade”, que jamais deve ser confundida com uma uniformidade que nivela, ou com uma diversidade buscada a qualquer custo, mas que exige considerar tudo a partir da conexão mais profunda que vos une: a inspiração divina que vos moveu a abraçar a mesma Forma de Vida7.
“Vivei sempre em verdade, para que em obediência morrais”: o seguimento de Cristo
No cristianismo, a verdade não é simplesmente um conceito ou uma teoria, mas uma pessoa, Jesus Cristo, que se auto define como “a Ver dade”8, e com a qual somos chamados a viver uma relação, uma experiência de encontro e de conhecimento sempre mais profundos. Viver “na verdade” significa, antes de tudo, aprofundar-se continuamente na relação pessoal com Deus- única e insubstituível- a partir da qual descobrimos a nossa autêntica identidade, nossa essência mais pro funda. Significa também conformar-se à verdade da encarnação do Filho de Deus, marcada pela pobreza e humildade, seguindo sempre “a vida e a pobreza do altíssimo Senhor nosso Jesus Cristo e da Sua santíssima Mãe”9. Mais do que uma adesão teórica a um conjunto de verdades dogmáticas, viver “na verdade” nos conduz ao coração da espiritualidade de Francisco e Clara: seguir Cristo pobre e humilde; observar o seu Evangelho nos diversos contextos comunitários, culturais e sociais em que estamos inseridos- em outras palavras, na concretude e autenticidade das nossas específicas situações de vida. Fica claro que a vida “na verdade”, da qual nos falam Francisco e Clara, representa um profundo acolhimento e uma adesão total à revelação de Deus em Jesus Cristo, uma adesão que exige uma “obediência” radical a Ele e à sua mensagem. Uma obediência que deve acompanhar-nos não apenas no viver mas também no morrer; uma fidelidade que nos sustenta por toda a existência, observando “em perpétuo a pobreza e humildade de nosso Senhor Jesus Cristo e da Sua santíssima Mãe e o santo Evangelho”10, pois “felizes são aqueles a quem foi dado andar por ele e perseverar até o fim”.
Tocamos aqui a uma realidade delicada: os pedidos de saída das nossas Ordens por parte de irmãs e de irmãos, mesmo após longos anos de vida consagrada. Essa realidade nos levanta muitas perguntas, com as quais precisamos nos confrontar seriamente, especial mente no que diz respeito ao nosso sentido pessoal de pertença ao Senhor e ao seu Evangelho, sobre a qualidade da nossa vida fraterna e sobre a profundidade da nossa formação.
“Não olheis para a vida exterior, pois aquela do espírito é melhor”: a autenticidade de vida
Notamos, antes de tudo, que Francisco não estabelece uma simples oposição entre a “vida externa” e a “vida interna”, que, em uma leitura superficial, poderia ser interpretada como o contraste entre a existência secular- da qual Francisco se distanciou com a sua conversão12- e a experiência de clausura vivida por Clara em São Damião. Francisco, na verdade, contrapõe a “vida externa” à “vida do espírito”, sugerindo que a verdadeira distinção não está entre o “externo” e o “interno”, mas entre o “viver segundo a carne” e o “viver segundo o espírito”13, entre o “espírito da carne” e o “Espírito do Senhor”14. Trata-se de duas modalidades existenciais fundamentalmente distintas: uma guiada pelo predomínio do ego (carne), e a outra pelo primado de Deus (espírito). Dessas duas perspectivas nascem também diferentes modos de viver a vida cristã e religiosa. Como Francisco explica: “o espírito da carne quer e se esforça muito por ter as palavras, mas pouco por fazer as obras, e procura não a religião e a santidade interior do espírito, mas quer e deseja ter a religião e santidade que aparecem exteriormente aos homens”15.
A escolha que somos chamados a renovar continuamente é entre uma vida cristã e religiosa superficial- feita de exterioridade e formalismos- e uma experiência cristã autêntica e coerente, permeada pelo mistério pascal de Cristo, desejosa, acima de tudo, “de ter o Espírito do Senhor e sua santa operação”16. Todos devemos, por tanto, vigiar contra o risco da “mundanidade espiritual”, que o Papa Francisco denunciava, na qual “se esconde por trás a aparência de religiosidade e inclusive de amor pela Igreja, e busca, em vez da glória do Senhor, a glória humana e o bem-estar pessoal”17.
“Eu vos peço, com grande amor, que tenhais discrição a respeito das esmolas que vos dá o Senhor”: o discernimento contínuo
Um claro indício do caminho segundo o Espírito é a atitude de discrição e discernimento constantes que, no caso de Clara, Francisco aplica à questão da esmola. A severa austeridade de Clara levava-a a privar-se até mesmo dos bens essenciais à sobrevivência. Por isso, “com grande amor” e preocupação por sua saúde, Francisco, junto com o Bispo de Assis, lhe impôs que “não deixasse passar um só dia sem tomar para sustento pelo menos uma onça e meia de pão”18. Essa mesma discrição também nos alerta contra o excesso oposto: uma permissividade que leva ao desperdício dos recursos naturais, cedendo às tentações hedonistas e consumistas. Em uma de suas Admoestações, Francisco afirma que “onde há misericórdia e discernimento, aí não há nem superfluidade nem rigidez”19
Podemos estender essa recomendação de discrição/discernimento não apenas à nossa relação com os bens materiais, mas também a todas as outras “esmolas”, isto é “a todos os dons que recebemos do Pai de toda misericórdia, a começar pelo mais precioso: a nossa vocação”20. Como a vocação é um dom que continuamos a receber d’Ele, torna-se necessário um discernimento permanente- tanto pessoal quanto comunitário- para avaliar como estamos cultivando e respondendo a esse dom tão inestimável.
Além disso, é necessária a discrição também nas nossas relações interpessoais, começando pelas irmãs da própria comunidade, evitando qualquer forma de abuso. A Igreja hoje nos pede uma particular sensibilidade em nossas relações com todas as pessoas, inclusive no modo como interagimos por meio das novas tecnologias de comunicação. Com efeito, vivemos hoje imersos em uma cultura digital que exige formação adequada e discernimento constante quanto ao seu impacto na vida contemplativa.
“Aquelas que estão atormentadas por enfermidade e as outras que por elas sofrem fadigas, todas vós, suportai-as em paz, pois vendereis muito caro esta fadiga”: a recíproca suportação
Entre as realidades nas quais haver discrição, ou seja, que requerem de nós um bom discernimento, está a da enfermidade, algo comum na comunidade de São Damião, a começar pela própria Clara, que permaneceu acamada por longos anos. Também entre nós, a realidade da enfermidade está presente e, às vezes, impõe grandes sofri mentos às irmãs e irmãos que enfrentam situações de saúde muito graves. Somos testemunhas da grande fortaleza de ânimo de tantas irmãs nas enfermarias que, apesar de seus sofrimentos, mantém a serenidade e também a alegria do coração. São irmãs que vivem o carisma em sua plenitude, pois se deixam transformar inteiramente no Cristo crucificado/ressuscitado que contemplam. A elas se unem tantas outras irmãs - e inteiras comunidades- que, não sem fadiga, se revezam para oferecer às irmãs doentes os cuidados necessários e, sobretudo, o afeto fraterno e o sustento espiritual. Parece-nos que, justamente por ver isso acontecer na comunidade de São Damião, Francisco, no “Ouvi, Pobrezinhas”, amplia a bem-aventurança que, no Cântico das Criaturas, era reservada àqueles que suportam enfermidades e tribulações21, incluindo também aquelas que se fatigam pelas irmãs enfermas. Sim, Irmãs, também vós sois verdadeiramente felizes quando vivem a enfermidade e o cuidado das doentes na perspectiva da fé!
No entanto, em certo sentido, podemos dizer que todos nós somos enfermos, ou seja, que todos temos necessidade de ser cuidados e suportados pelos outros, pois em muitos momentos nos deparamos com nossos limites, nossas fragilidades, nosso pecado. Esses mo mentos deveriam ser considerados, por nós, como momentos de graça, pois nos recordam nossa verdadeira condição: a de pessoas sempre necessitadas da força e da misericórdia de Deus, e também do suporte dos irmãos e irmãs, de alguém que nos ajude a carregar o peso da vida. É então que essas situações tornam-se ocasiões privilegiadas para realizar a lei de Cristo22. E isto não se dá apenas dentro das comunidades locais, mas também entre as comunidades das vossas Federações e das vossas Ordens. Isto requer, muitas vezes, o redimensionamento das presenças nos diversos territórios, a fim de que a todas as irmãs seja garantido o direito de viver, até o fim, uma vida contemplativa franciscana plena e digna.
“Cada uma será rainha no céu, coroada com a Virgem Maria”: a esperança escatológica
A bem-aventurança da enfermidade- seja da própria irmã ou daquelas que cuidam dela- isto é, ser feliz mesmo em situações de grande fragilidade, só é possível quando se vive em vista de um valor maior que a própria saúde ou o bem-estar pessoal: algo que dê verdadeiro sentido a tudo e pelo qual valha a pena oferecer tudo. E para nós cristãos, aquilo que pode dar pleno sentido à vida- o tesouro escondido ou a pérola preciosa pela qual vale a pena vender tudo23-, não pode ser outra coisa senão o amor de Cristo, derramado em nossos corações por meio do Espírito Santo24, nisso consiste o Reino de Deus e a sua justiça25. O Reino de Deus já está no meio de nós26, porém ainda não plenamente; está neste mundo, mas não é deste mundo27, vai além dele, pois possui uma dimensão escatológica que, para vós, segundo aquilo que pensou Francisco, possui uma forte conotação mariana. Com efeito, já naquele que foi seu primeiro escrito às Senhoras Pobres, conhecido como a “Forma de Vida”, Francisco via a vida de Clara e de suas irmãs como uma continuação da experiência de Maria: a filha e serva por excelência do Pai, a Esposa do Espírito Santo e a discípula mais perfeita de Cristo28. Assim, aquelas que perseveram até o fim no seguimento da vida e da pobreza do Altíssimo Senhor Jesus Cristo e de sua santíssima Mãe29, são destinadas a participar do mesmo destino da Mãe de Deus: tornar-se rainhas, coroadas no céu com a “Senhora Santa Rainha”30, a Virgem Maria. Portanto, na eternidade, cumpre-se na vida das irmãs a passagem de Pobrezinhas a Rainhas: eis a grandeza da vossa vocação, eis a esperança escatológica à qual sois chamadas!
Queridas Irmãs, que neste Ano Jubilar da Esperança possais renovar a fé nesta grande esperança: participar da plenitude da vida em Deus, para a qual Maria vos precedeu, tendo percorrido neste mundo o mesmo caminho- o da obediência, da pobreza e do ser viço. E, enquanto vos agradecemos pelo vosso testemunho de vida contemplativa franciscana, pela vossa proximidade às nossas Ordens e por vossas preciosas orações, invocamos sobre cada Irmã e todas as vossas comunidades as mais abundantes bênçãos d’Aquele que é o nosso “Altíssimo, Onipotente e Bom Senhor”31 e que deseja ver-vos todas “rainhas”.
Fraternalmente,
Fr. Massimo Fusarelli, OFM Fr.
Carlos Trovarelli, OFMConv
Fr. Roberto Gebuin, OFMCap
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