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PENTECOSTES

Pistas homilético-franciscanas

Leituras: At 2,1-11; Sl 103 (104); 1Cor 12,3b-7.12-13; Jo 20,19-23

Tema-Mensagem: Este é o dia em que o Espírito do Senhor foi derramado em plenitude e definitivamente sobre toda a humanidade e sobre todo o universo.

Sentimento: júbilo-espanto


Introdução

Muitas são as manifestações ou vindas do Espírito Santo ao longo da História Sagrada, como, por exemplo, na criação, no dilúvio, na Encarnação sobre Nossa Senhora, no Batismo sobre Jesus, etc. Em todas elas manifesta-se sempre o milagre da vinda, seja em forma de criação ou de recriação. Hoje, porém, dia de Pentecostes, celebramos a consumação de todas as suas manifestações e vindas; dia em que o Espírito do Senhor foi derramado de modo total, completo, definitivo e inteiro sobre toda a humanidade e sobre todo o orbe da terra. É o Reinado de Deus reinando, isto é, servindo.

1. O Espírito do Senhor encheu o universo inteiro (Jo 20,19-23)

É assim, com este anúncio, através da antífona da Entrada da Missa, que a Igreja celebra este mistério.

1.1. Ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana

No Novo Testamento, a Vinda do Espírito Santo é narrada de duas formas e com datas diferentes. No Evangelho de São João, lido hoje, ela acontece no primeiro dia da semana (Jo 20,19), isto é, no dia da Ressurreição e é descrita como um Sopro de Jesus crucificado-ressuscitado sobre os Apóstolos. A outra, narrada por Lucas, nos Atos dos Apóstolos, veremos mais adiante.

São João gosta de chamar o dia da Ressurreição de “primeiro dia da semana” porque vê nele uma relação muito expressiva com o primeiro dia da semana da criação. Em outras palavras, se outrora, na primeira criação, o homem foi criado a partir do barro, da terra, de baixo, deste mundo, agora, na segunda, isto é, com o mistério pascal, o novo homem é nascido do alto, do espírito, do sopro expirado do peito de Jesus, na cruz. Se o primeiro homem era terrestre o novo é celeste, divino; se o primeiro se regia pelas leis da natureza este se regerá pelo espírito de Jesus crucificado-ressuscitado, a misericórdia do Pai. No primeiro Adão – alma vivente – nós nascemos para a vida mortal e morremos a morte vital a cada dia, desde o útero até o túmulo. No segundo e último Adão, isto é, Cristo – espírito vivificante – nós morremos para o pecado enquanto doença mortal e para a morte enquanto separação de Deus, e nascemos para a vida de encontro eterno com Deus.

Fica claro, portanto, que os discípulos ainda não haviam recebido o Espírito Santo em sua plenitude, porque Jesus ainda não havia sido glorificado ( cf. Jo 7, 39). Isso quer dizer que o dom da plenitude do Espírito Santo nasce da glorificação de Jesus, do mistério pascal, isto é, quando, na cruz ao consumar toda a sua obra, inclinando a cabeça, entregou (doou) o espírito.

1.2. O dom da paz que nasce do mistério da Cruz

Chama a atenção a insitência de Jesus em conceder aos discípulos a paz antes do dom do Espírito Santo. A explicação é simples e dada pelo próprio evangelista: por medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se encontravam estavam fechadas (Jo 20,19).

Os discípulos, embora já tivessem recebido, por parte de Maria Madalena, a notícia do sepulcro vazio, não só não conseguiam crer na ressurreição do mestre, mas continuavam perturbados, com medo, atribulados e envergonhados por causa de sua fuga ou traição por ocasião da prisão do Mestre. Consequentemente, ainda não haviam se reencontrado com Ele. Ora, Jesus sabe muito bem que sem isso, ou seja, sem o reencontro com Ele – o crucificado-ressuscitado - não há como receberem o seu Espírito, muito menos sua missão. Por isso, e para isso era necessário, primeiro, pôr ordem na casa, paz no coração, reconcilia-los com a cruz, liberta-los da vergonha e do medo de abraçar e seguir o caminho da cruz, palmilhado por Ele. Daí a insistência e a repetição: “A paz esteja convosco” (idem).

Não se trata, portanto, da paz dos contratos humanos, cheios de desconfianças, nem da paz como serenidade ou ausência de perturbações e contrariedades, no sentido do pacifismo ou da pacificação oriundos do mundo, ou mesmo da egoísta fuga do mundo. A paz que Cristo veio trazer ao coração dos homens e da humanidade vem da cruz como processo, trabalho, luta a fim de permitir que se introduza no coração do homem a fé, a confiança Naquele que pelo Qual Jesus deu sua vida: o Pai; a paz que já havia sido anunciada na noite do Natal como dom do Céu “aos homens queridos de Deus”; uma paz, portanto, que nasce da mesma fé, da mesma confiança que Ele testemunhou até a morte e morte de cruz.

Jesus sabe que um coração perturbado é como terreno pedregoso ou espinhento que jamais permitirá que o Espírito Santo seja recebido e acolhido. Por isso, quem toma a iniciativa é Jesus. É Ele quem abre a porta, põe-se no meio deles, mostra-lhes as mãos e o lado, isto é, os sinais de sua cruz e diz: “a paz esteja convosco”. Uma paz que, nascendo do reencontro, da reconciliação com o Senhor crucificado-ressuscitado, era indispensável, pois será justamente este o Evangelho, a Boa Nova, que eles deverão viver a partir de agora e anunciar aos quatro cantos do mundo até o fim dos tempos. Um reencontro, que apaga o pecado da desconfiança, da traição e da fuga da Cruz; mas, também, que não tem nada de auto satisfação, uma vez que os unge e os encoraja com o seu Espírito para o mesmo caminho e para a mesma missão que Ele recebera do Pai: “Como o Pai me enviou também eu vos envio (Jo10,21)”. Ora, este “como” não é outro senão o caminho e a missão da Cruz.

Portanto, ao dom do Espírito Santo precede o dom da paz. Sem este não há como receber aquele. Por isso, a Igreja, mãe amável e mestra sábia, sempre, no início de cada celebração eucarística, bem como no momento da comunhão, antes de receber o Corpo do Senhor, renova e reatualiza para seus fiéis este gesto e esta saudação de Jesus com os Apóstolos: “A paz do Senhor esteja sempre convosco”. O dom da Paz se concretiza, logo em seguida, com o perdão dos pecados, com a reconciliação com Deus e com os irmãos. Só então, pode-se partir para o reencontro com o Senhor na Palavra e na Eucaristia. São Francisco, fazendo eco a esse dom, tanto em seu Testamento como em sua Regra, exorta os frades para que sempre ao iniciarem uma pregação ou entrarem numa casa dissessem primeiro: “O Senhor te dê a paz” (T 23).

1.3. Jesus soprou infundindo neles o Espírito Santo

Continuando, o evangelista escreve: E depois de ter dito isto, soprou sobre eles e disse: ‘Recebei o Espírito Santo’ (Jo 20,22).

Estamos diante da primeira e mais significativa experiência do Cristo vivo e ressuscitado por patrte da Igreja primeva: a presença criativa do Espírito. Pode-se discutir muita coisa acerca de sua Vinda, de sua natureza, mas quanto à sua presença como uma realidade que começou a marcar radical e definitivamente a vida daqueles homens e daquelas mulheres a ponto de transformá-los por dentro e por fora, não há como duvidar. Todo livro dos Atos dos Apóstolos tem como único protagonista o Espírito do Senhor e seu santo modo de operar, dirá mais tarde São Francisco.

Trata-se de uma realidade misteriosa que não pode ser vista e explicada por argumentos e razões humanas, mas tão somente através de metáforas, como estas do sopro, do ar, do vento, do fogo. Se em João o sopro desce em forma de brisa suave para expressar sua ternura, já em Lucas vem como forte ventania para indicar não violência, mas potência, alento.

A alegoria do vento leva o leitor e o ouvinte para o princípio da criação onde o Espírito de Deus pairava sobre as águas abismais (cfr. Gn 1, 2) a fim de fecunda-las, tornando-as, assim, princípio da vida terrestre. Agora um novo sopro irá adejar sobre todos os povos de estirpes diferentes e congregá-los na unidade de um novo povo, de uma nova nação, sem fronteiras geográficas, nem de raça ou cultura. Realizou-se assim a profecia que viera à fala pela boca de Joel: Derramarei o meu espírito sobre todo o ser vivo: vossos filhos e filhas profetizarão, os vossos anciãos terão sonhos e os vossos jovens terão visões; também sobre os meus servos e servas derramarei, naqueles dias, o meu espírito (Joel 2, 8).

O Cristo Crucificado que São Francisco contemplou na Igrejinha de São Damião, em Assis, aparece com o peito luminoso e pleno do Espírito Santo. Trata-se do Espírito de Deus que O acompanhou desde a Encarnação e lhe deu alento até sua glorificação na morte de cruz; um Espírito pronto, sedento e desejoso de ser comunicado a todos os que fossem atraídos e viessem a Ele que, na cruz, foi elevado da terra na direção do céu, cumprindo, assim, o que dissera: “Quanto a mim, quando eu for elevado da terra, atrairei a mim todos os homens” (Jo 12, 32).

A experiência da presença cuidadora, amorosa e maternal do Espírito Santo na pessoa de Francisco e em sua Ordem era tão evidente que chegara a afirmar que o verdadeiro Ministro geral da Ordem é o Espírito Santo (2C 193).

1.4. O perdão dos pecados

Ao dom do Espírito Santo segue o do perdão dos pecados: “A quem perdoardes os pecados...” (Jo 20,23). Trata-se do fruto maior de toda a obra de Cristo, sua grande Boa Nova, repetida inûmeras vezes em todas as suas pregações, gestos e atitudes, culminando no supremo ato de misericórdia, a Cruz: o perdão, a reconciliação com o Pai. Estamos diante do supremo poder do amor-caridade: o perdão dos pecados, maior que curar enfermos e paralíticos, sim, maior até mesmo que ressuscitar mortos! Isso porque no perdão atua o Espírito da Caridade, ou melhor, o Espírito que é a própria Caridade incriada, o Dom do Amor, que vive na doação-recepção de Pai e Filho na Trindade Santa: o Espírito Santo.

Por isso, quem realmente perdoa em todo e qualquer perdão é sempre Deus. Nos atos de perdoar reverbera e repercute a presença de Deus. Em Deus, perdoar não é ato, é ser (E. Carneiro Leão). Ou, como se expressou nosso Papa Francisco: O nome de Deus é misericórdia. Ao homem compete apenas abrir-se ou não à misericórdia. Os que se abrem são perdoados. Os que se fecham, permanecem nos seus pecados, pois Deus não pode arrombar a sagrada porta da liberdade nem se impor, muito menos vir às brutas. Suas vindas são sempre suaves como o pouso da pomba e suas batidas leves como a brisa da tarde. Deus, põe-se, assim, como um mendigo do amor, que solicita ao homem a graça de ser recebido por ele no amor.

2. A garantia da universalidade da Igreja (At 1,1-11)

Já, no trecho dos Atos dos Apóstolos, também lido na missa de hoje, a Vinda do Espirito acontece no dia de Pentecostes e se manifesta em forma de uma forte ventania que encheu a casa, onde os discípulos se encontravam, e em forma de línguas de fogo que se repartiam e pairavam sobre a cabeça de cada um deles.

2.1. Pentecostes

“Pentecostes”, cujo nome significa o quinquagésimo dia após a Páscoa, era a festa que celebrava a alegria da libertação, bem como os primeiros frutos colhidos da Terra Prometida. Ora, não foi muito difícil para os primitivos cristãos-judeus ver a Vinda do Espírito Santo como um novo Pentecostes que veio selar uma nova Aliança, não mais com uma lei escrita em pedras, mas com o derramamento do Espírito de Deus no coração dos homens. Por isso, segundo Lucas, o mistério de todo este dom se realiza cinquenta dias após a Ressurreição de Jesus: o novo Pentecostes.

São Lucas coloca a Vinda do Espírito Santo dentro da Festa de Pentecostes com a nítida intenção de realçar que este dom não é apenas para um pequeno grupo de pessoas, os judeus, mas para todas as raças, povos e nações de todo orbe terrestre e de todos os tempos. Pois, naquela festa se reuniam em Jerusalém judeus vindos de todas as partes do mundo. O sinal escolhido para manifestar o poder maravilhoso deste dom foi o milagre da universalidade das línguas, assim descrito por Lucas: De repente, veio do céu um ruído como uma forte ventania que encheu toda a casa onde eles estavam; então lhes apareceu algo como línguas de fogo, que se repartiam, e pousou sobre cada um deles. Todos ficaram repletos do Espírito Santo, e se puseram a falar outras línguas (At 2, 2-3). Assim, a partir de Jerusalém, o Evangelho de Jesus Cristo, a modo de um fogo alastrante, iria se difundir por toda a terra e ser pregado em todas as línguas, reunindo todos os povos na Comunidade universal da caridade, que é a Igreja.

A partir de então, como se poderá ver ao longo de todo o livro dos Atos dos Apóstolos, não só os judeus, mas também os gentios convertidos ao Evangelho do Cristo farão parte de uma nova humanidade, representada pela universalidade do novo Povo de Deus, a Igreja, sedimentada pelo Espírito-Caridade que produz comunhão (koinonía).

O maior sinal dessa comunhão é quando os homens conseguem falar uns com os outros e se entender embora falem línguas diferentes. As línguas se tornam, então, como labaredas do amor. As falas são então falas inflamadas de um fogo divino que produzem concórdia e paz, sobre a base da justiça e da verdade, no amor – Comunhão dos Santos. Bem o contrário de quando os homens quiseram construir Babel, a torre da confusão, nascida do egoísmo de cada língua fechada cada uma em seus próprios intereses.

Estamos, pois, diante do início da Recriação do humano do homem e da humanidade universal. Nesta nova humanidade, que está sempre em gênese, fazendo-se e por se fazer (in fieri), os homens não somente estão juntos, reunidos, vivendo uns-com-os-outros, mas, unidos, isto é, vivendo numa comunhão, uns-para-os-outros, em que a unidade não é uniformidade, mas acolhimento e recolhimento das diferenças na identidade comum da caridade.

Para dizer esta forma de comunidade, Paulo usou a imagem do corpo (Cf. segunda leitura de hoje: 1Cor 12,3b-7.12-13).

2.2. Fogo que se repartia em línguas

Lucas, para expressar a riqueza do mistério do Dom do Espírito Santo, além da forte ventania, usa também a metáfora do fogo: Então apareceram línguas como de fogo que se repartiram e repousaram sobre a cabeça de cada um deles (At 1,3). Entre os vários significados deste evento deve-se realçar primeiramente que o fogo é um só. Repartindo-se, porém, igualmente sobre cada um dos discípulos quer expressar que o princípio da união dos cristãos, da Igreja é um só e vem do alto.

Entre as diversas propriedades do fogo – o Espírito do Amor que é Deus – deve-se destacar a de queimar todas as arestas do individualismo e purificar todas as ambições do subjetivismo para assim conduzir tudo e todos à unidade que nasce das cinzas da humildade. Assim, o fogo do amor que arde no coração das pessoas cria comunidade transformando o “eu” em “nós”. Não é à toa que, desde os primórdios da humanidade, foi ao redor do fogo, do seu crepitar de suas labaredas, do seu expandir e concentrar que foram surgindo e se criando a família, a vizinhança, a comunidade humana, e, ao mesmo tempo foi ao redor do fogo que os homens adquiriam interioridade, iluminação e inspiração.

Conclusão

A partir do Domingo da Ressurreição ou de Pentecostes, através do júbilo e do fogo do encontro com Jesus Cristo crucificado-ressuscitado, os discípulos, os homens e as criaturas não são mais os mesmos. Tomados pelo poder do Espírito Santo, que invadiu o universo inteiro, agora são mais que homens e mais que criaturas: tornaram-se ‘deuses”, seres espirituais, da estirpe de Deus (cfr. At. 17,29), filhos de Deus. Começa a surgir, assim, uma nova humanidade dentro das humanidades, uma nova criação dentro da criação, uma nova história dentro da história: o Reino de Deus, assentado não mais no poder da lei ou da carne, isto é, de contratos ou decisões meramente humanas, mas na paz que brota da experiência da reconciliação e do perdão dos pecados que nos mereceu o Cordeiro imolado, Cristo crucificado-vivo-ressuscitado no meio de nós, do mundo.

As maravilhas que então começaram a surgir a partir deste processo de transformação, gerado e incendiado pela presença contínua deste Espírito, podem ser contempladas ainda hoje nos famosos Atos dos Apóstolos.

Hoje, depois de alguns séculos, um tanto ou muito esquecida do fogo do Espírito Santo, como o protagonista de toda a sua vida e missão, a Igreja volta a sentir a necessidade de evangelizadores com Espírito (Papa Francisco, em EG 259). E, como exemplo de tais evangelizadores, o Papa nos recomenda São Francisco e seus primitivos companheiros (Cf. LS). De fato, poucas vezes na história se pode ver tão bem o ressurgimento da Igreja primitiva, a Igreja dos Apóstolos, como em São Francisco e seus companheiros (Cf. Jacques de Vitry, em FF, pág. 1306). Como os primitivos cristãos também estes tiveram no Espírito Santo seu primeiro e principal protagonista. Por isso, como aqueles, também estes possuem os seus “Atos do Bem-aventurado Francisco e dos seus Companheiros”, seus “I Fioretti”, isto é, seus feitos heroicos, seus prodígios e milagres. Mas, tanto lá como cá, em tudo e com todos, era sempre o mesmo Espírito o autor de tantas maravilhas, a ponto de Francisco exortar seus Irmãos que, ao comungarem, estivessem muito atentos, pois, diz ele, “quem comunga, quem recebe o santíssimo corpo e sangue do Senhor não somos nós, mas o Espírito do Senhor que habita nos seus fiéis” (Ad I,12).

Enfim, evangelizadores com Espírito, diz o Papa Francisco, são evangelizadores que se abrem sem medo à ação do Espírito Santo (EG 259).


Fraternalmente,

Frei Dorvalino Fassini e Marcos Aurélio Fernandes

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