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O AFLORAR DO “SER-EU”:A FENOMENOLOGIA DO SOFRIMENTO E DA DOR

Perdendo-me em minhas leituras e reflexões, cheguei a um questionamento capaz de evocar uma realidade talvez ainda não pensada por uma boa parcela da sociedade: como ocorre a experiência da dor e do sofrimento no ser humano? Até certo ponto, a dor e o sofrimento são próximos e sua causa pode até ser posta como a mesma, porém, em última instância, são diferentes. Aparentemente, a dor é causada por algo “estranho” ao corpo sofrente. Por exemplo, algum ferimento em nossa pele, alguma queimadura, corte ou outras tantas coisas mais que modificam a nossa natureza corpórea ou que lhe causem qualquer tipo de corrupção instantânea ou progressiva, são situações causantes de dor. Por outro lado, o sofrimento, em sua maioria, é precedido pelo medo [ou temor] que gera aflição. Isso se dá diante da eminência da paixão[3] a ser sofrida e desquerida por nós. Por isso, tanto a dor quanto o sofrimento podem ter a mesma causa, porém, são disposições diferentes de nossa humanidade. A dor, em última instância, é algo que fere direta e primeiramente o corpo; o sofrimento, é algo que vai contra a nossa vontade, é algo que desqueremos em absoluto [“simpliciter”] e que fere a nossa alma.

O questionamento inicial chega a um nível mais profundo. Devemos perguntar como sentimos essa dor da corrupção ou ofensa à natureza e o sofrimento daquilo que desqueremos em absoluto e em que instância de nossa humanidade que se dá essa percepção. Para isso, vejamos o seguinte exemplo: quando cortamos um dedo de nossa mão com algum instrumento pontiagudo, uma faca, por exemplo, nós sentimos que a natureza de nosso dedo foi afetada e que isso não é algo bom. Sofremos, então, uma paixão [ou sofrimento-de-ação] e, com isso, sentimos a dor que o corte causa em nosso corpo. Digamos que próximo de nós está um determinado amigo x. Manifestamos a este amigo que estamos sentindo muita dor por causa do corte causado pela faca. O nosso amigo x olha para o corte em nossa mão, não diz nada, apenas toma um pano limpo e pressiona sobre o corte para parar o sangramento. Nessas circunstâncias seria lícito afirmas que o nosso amigo teria compartilhado a nossa dor? Suponhamos que ele tenha sofrido simultaneamente um corte semelhantemente a nós, da mesma forma ele não estaria sentindo a mesma dor que a nossa. Podemos pensar, também, que ele já tenha vivenciado uma situação no passado de ter cortado um dedo e, por isso, estaria inferindo a dor que estamos sentindo, ele, em última instância, não estaria sentindo a mesma dor que nós estamos sentindo. Então, a resposta a ser dada é que o nosso amigo x não compartilhou a nossa dor. O mesmo princípio é aplicado acerca do sofrimento. Podemos dar a conhecer a outra pessoa a nossa angústia [ou sofrimento ou aflição], mas, em última análise, quem sente somos nós.

A paixão [sofrimento-de-ação], somente é compreendida a partir da perspectiva de quem sente. Essa realidade de nossa humanidade evoca uma primeira pessoa sofrente, ou seja, ela evoca a consciência de uma substância subjetiva e irredutível, um “eu” dotado de interioridade. Levada às últimas circunstâncias, o sofrimento-de-ação é vivenciado por cada um de nós em nossa subjetividade. Em linguagem contemporânea, somente sentimos o que sentimos porque somos dotados de uma mente consciente ou, ainda, em uma linguagem religiosa, sentimos dor ou deleite, alegria ou tristeza, porque temos uma alma dotada de vontade e intelecto. Esse sentimento experienciado por nós nas mais variadas circunstâncias de nossas vidas, quer sejam elas nocivas, desconvenientes ou corruptíveis, quer sejam desqueridas, são causantes do fenômeno do nosso “ser-eu”. É “sendo” que tomamos consciência do nosso “ser-eu” e, neste “sendo”, é que é aflorado o nosso sujeito subjetivo no mundo. Portanto, a dor ou o sofrimento, em última análise, estão postos a serviço de tornar o nosso “ser” “sendo aí no mundo”.


Frei Uellinton Valentim Corsi, OFM




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


João Duns Scotus, Ordinatio IV, d. 15, q. uni., Opera Omnia, Studio et cura commissionis scotisticae, Civitas Vaticana.


Martin Heidegger, Ser e Tempo, Petrópolis, Editora Vozes, 2015.


Edmundo Luiz Kunz, Deus no espaço existencial, Porto Alegre, Editora Est, 1975.

[1] Para contextualizar o leitor, essa reflexão é consequência do estudo e pesquisa que o Prof. Dr. Roberto Hofmeister Pich e o aluno Uellinton Valentim Corsi estão realizando ao longo destas últimas semanas. O estudo em questão versa sobre a obra de João Duns Scotus, Ordinatio III, d. 15, q. uni., em que o sutil aborda o sofrimento de Cristo como matéria de análise. Nesse, Scotus tenciona vários pontos acerca da antropologia, cristologia e da metafísica cristã. Ele procura fazer minuciosa investigação sobre o sofrimento vivido por Cristo na eminência de sua paixão. Portanto, este é apenas um “ensaio reflexivo” e, então, não temos a pretensão de seguir o rigorismo acadêmico científico. Para tanto, será publicado, posteriormente, o resultado de nossas pesquisas. [2] Graduando em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Pesquisador em metafísica e ética franciscana e scotista na escolástica sob orientação e supervisão do Prof. Dr. Roberto Hofmeister Pich. Currículo lattes: <http://lattes.cnpq.br/9252808194783358>. E-mail: uellintoncorsi@gmail.com. [3] O uso do tempo “paixão” não quer designar a “Paixão de Cristo” enquanto tal, mas sim, designa o sofrimento-de-ação. Dessa forma, a Paixão de Cristo, entendida como um sofrimento-de-ação causado à pessoa de Cristo pode ser entendido como uma forma de paixão no sentido que aqui adotamos.

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