Discernir a partir do Espírito de Deus: em chave de Unidade, Caridade e Paz frente às tensões do processo Sinodal Pan-Amazônico. Artigo de Maurício López
“Desqualificar o Instrumentum Laboris é despojar o processo sinodal de seu inegável valor de discernimento e sua potencial fonte de novidade, ainda mais quando esse está em marcha. Ante uma porção ampla do Povo de Deus, que participou com suas esperanças e fragilidades na consulta sinodal, e daqueles que, sem dúvidas, deixaram refletido no Instrumentum Laboris o seu sentido de fé no ato de crer (sensus fidei in credendo), o convite é para tirar suas sandálias e abrir os ouvidos e corações para ver o que Deus poderia estar dizendo a partir deles para o bem de toda a igreja. É necessário retirar qualquer atitude de suspeita preexistente que impeça o Espírito de se expressar como uma brisa suave”, escreve Maurício López, mexicano, secretário executivo da Rede Eclesial Pan-Amazônica – Repam e membro do Conselho Pré-Sinodal para o Sínodo Pan-Amazônico. Ele foi presidente das Comunidades de Vida Cristã – CVX. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Eis o artigo.
Mesmo que tenha o dom da profecia, o saber de todos os mistérios e de todo o conhecimento; mesmo que tenha a fé mais total, a que transporta montanhas, se me falta o amor, nada sou (…) Pois o nosso conhecimento é limitado e limitada a nossa profecia (1Cor 13, 2; 9)
Um olhar sobre o contexto das tensões associadas ao Sínodo Pan-Amazônico e seu Documento de Trabalho (Instrumentum laboris – IL) Parece-me natural, e até desejável, que haja vozes diversas (inclusive de dissenso) nesse processo Sinodal Pan-Amazônico. Isso reflete muito bem a ampla riqueza de nossa Igreja. Em um caminho sinodal, se fiel a sua função essencial, devem ser bem-vindas todas as vozes, sempre e quando tenham uma correta intenção e sejam para o bem da Igreja e sua missão.
Talvez algum dos traços mais definidores do Sínodo Pan-Amazônico, e que pode ser a razão de certa inquietude ou incompreensão por parte de alguns setores, é que é um Sínodo que vem da periferia ao centro – Maurício López
Esse Sínodo Pan-Amazônico, que carrega consigo vários traços de novidade, está em comunhão plena com a Constituição Apostólica “Episcopalis Communio” (EC) do papa Francisco. Talvez algum dos seus traços mais definidores, e que pode ser a razão de certa inquietude ou incompreensão por parte de alguns setores da própria Igreja e fora dela, é que é um Sínodo que vem da periferia ao centro.
A Amazônia e a própria região sul-americana, com sua caminhada eclesial rica e particular, representam as margens que buscam contribuir para o centro de sua purificação, como acontece em tantas ocasiões no Evangelho de Jesus. Por nenhuma razão é um processo em que esta periferia pretende ocupar o lugar do centro. Na verdade, isso seria totalmente indesejável. Esta periferia traz consigo o que ela tem e o que é, e com isso talvez pudesse oferecer algumas luzes para o momento presente que exige mudanças urgentes diante dos enormes desafios tanto para a Igreja quanto para a sociedade global como um todo.
Seria muito positivo que todos nós que participamos do processo de preparação para o Sínodo Pan-Amazônico, ou que tenham um interesse genuíno por ele, possamos ler e orar algumas dicas do Concílio Vaticano II como pré-condição para fazermos nossas contribuições. Tudo isso sob a premissa de ser uma Igreja de Cristo na diversidade, e onde há apenas um Colégio Apostólico que une o Sumo Pontífice e os Bispos:
“Já na disciplina primitiva, segundo a qual os Bispos de todo o orbe comunicavam entre si e com o Bispo de Roma no vínculo da UNIDADE, da CARIDADE e da PAZ” (nº 22. Constituição sobre a Igreja. Cap 3. O Episcopado. Concílio Vaticano II – CVII).
Ao receber qualquer posicionamento sobre o Sínodo Pan-Amazônico, e avaliar sua correta intenção, ajudará muito identificar se esse vem do desejo de promover as três atitudes e condições essenciais: Unidade, Caridade e Paz – Maurício López
Ao receber qualquer posicionamento em relação ao Sínodo Pan-Amazônico, e avaliar sua correta intenção, ajudará muito identificar se esse vem do desejo de promover estas três atitudes e condições essenciais: Unidade, Caridade e Paz. Não devemos nos preocupar com as divergências, insistimos que elas são, de fato, potencialmente boas, mas algo que deve ficar absolutamente claro é perguntarmos a nós mesmos se elas foram criadas a partir desses três elementos tão belamente expressos no CVII e às vezes pouco vivenciados.
Chaves de um discernimento sinodal para buscar a vontade de Deus neste Kairós
O discernimento de espírito é uma maneira de encontrar e seguir a vontade de Deus, como aprendi e experimentei em meu próprio serviço de acompanhar em sentido amplo e a partir da tradição de Santo Inácio de Loyola. Trata-se de distinguir o que vem do bom Espírito que conduz a maior plenitude, mais sentido de vida, maior paz interior e comunhão; e, ao contrário, o que vem do espírito maligno que é o oposto, o que produz confusão, perda de sentido e ruptura interna negativa.
Vale a pena convidar toda a Igreja a entrar em uma atitude genuína de discernimento sinodal. Espera-se que não se caia na armadilha de entrar em controvérsias antes do discernimento da Assembleia Sinodal – Maurício López
A partir disso, vale a pena convidar toda a Igreja, seja da Amazônia ou não, a entrar em uma atitude genuína de discernimento sinodal para buscar e encontrar a vontade de Deus. Espera-se que não se caia na armadilha de entrar em controvérsias antes do discernimento da Assembleia Sinodal, onde poderíamos nos distrair com a estridência de certas posições que não enriquecem o processo. Peçamos aos padres sinodais e a todos os assistentes da Assembleia: que saibamos identificar o que é de Deus e que representa uma “consolação espiritual” (Exercícios Espirituais de Santo Inácio, nº 316): aumento de esperança, fé e caridade e alegria interior que atrai as coisas de Deus; e o que, ao contrário, não é de Deus que expressa uma “desolação espiritual” (E.E. Nº. 317): trevas na alma, turbação (inquietação destrutiva), o que nos leva à desconfiança e à falta de sentido.
Na reflexão do Instrumentum Laboris (Documento de Trabalho), e em todos os conteúdos associados ao Sínodo Pan-Amazônico, somos chamados a fazer uma leitura séria e profunda. Devemos discernir com valentia, ânimo e liberdade interior o que Deus nos chama neste momento que reconhecemos como um verdadeiro kairós. Um momento especial e propício para reconhecer a revelação de Deus para a Amazônia e para a missão de seguir o Senhor de toda a Igreja.
Alguns perigos para o discernimento sobre o Instrumentum Laboris do Sínodo Pan-Amazônico
Desqualificar o IL é despojar o processo sinodal de seu inegável valor de discernimento e sua potencial fonte de novidade, ainda mais quando esse ainda está em marcha. Ante uma porção ampla do Povo de Deus, que participou com suas esperanças e fragilidades na consulta sinodal [1], e daqueles que, sem dúvidas, deixaram refletido no Instrumentum Laboris o seu sentido de fé no ato de crer (sensus fidei in credendo), o convite é para tirar suas sandálias e abrir os ouvidos e corações para ver o que Deus poderia estar dizendo a partir deles para o bem de toda a igreja. É necessário retirar qualquer atitude de suspeita preexistente que impeça o Espírito de se expressar como uma brisa suave.
Desqualificar o Instrumentum Laboris é despojar o processo de seu inegável valor de discernimento e sua fonte de novidade, contra o Povo de Deus que participou com suas esperanças e fragilidades na consulta sinodal – Maurício López
1. Há um perigo de pretender “atar” o Espírito para que antes que ocorra o Discernimento Sinodal na Assembleia de Outubro lhe imponham limites, restrições ou cadeias. Querer submeter o Espírito em função de vontades particulares seria infrutífero e poderia limitar a liberdade no caminho sinodal. É necessário compreender o processo, suas etapas, e então identificar que tanto o Documento Preparatório (Lineamenta) quanto o Documento de Trabalho (Instrumentum Laboris) são meios, não fins. Isto é, são como o grão de trigo que de certa forma deve morrer para dar fruto. Não são documentos finais, são reflexões resultantes de um longo processo com uma amplíssima participação, que serão de ajuda para o discernimento “tanto, quanto” nos permitam encontrar o que Deus pede do processo.
É muito importante recordar também que o Sínodo é um instrumento para acompanhar o Papa em seu serviço à Igreja. Um fator determinante para que este dê bons frutos é a genuína disposição para a comunhão. Neste sentido, é bom retomar a seguinte referência do Concílio Vaticano II:
“O colégio ou corpo episcopal não tem autoridade a não ser em união com o Romano Pontífice, sucessor de Pedro (…)” (Nº 22. Constituição sobre a Igreja. Cap 3. O Episcopado – CVII)
2. O Documento de Trabalho (Instrumentum Laboris) do Sínodo é o resultado de um processo intenso, sério e muito rezado, em chave de Colegialidade. É um documento elaborado depois de uma extensa consulta (talvez sem precedentes na história recente da Igreja) como já se expressou, e que foi refletido, debatido e aprovado por um Conselho Pré-Sinodal instituído pelo papa Francisco para esse fim. Nele participaram bispos representantes de instâncias especializadas que acompanharam a missão da Igreja nesse território; bispos com especial sensibilidade sobre o tema ou que aportam critérios a partir de outras realidades fora da Amazônia; autoridades e altos representantes de instâncias do Vaticano por sua relação com o tema; e o próprio papa Francisco que o preside. Assim mesmo, em apoio, participaram também a Secretaria do Sínodo dos Bispos como instância organizadora e especialistas do território e de Roma.
O Documento de Trabalho (Instrumentum Laboris) do Sínodo é o resultado de um processo intenso, sério e muito rezado, em chave de Colegialidade – Maurício López
É muito importante avaliar essa expressão de colegialidade e reconhecer sua riqueza, já que os questionamentos que possam vir deveriam sempre levar em conta o sentido colegial do processo, que é inerente ao modo de ser eclesial. Nesse mesmo sentido, ajuda a voltar às diretrizes do processo Conciliar do Vaticano II, as mesmas que seguem iluminando este e todo processo sinodal na sua preparação e ao se integrar em Assembleia:
“Este colégio, enquanto composto por muitos, exprime a variedade e universalidade do Povo de Deus e, enquanto reunido sob uma só cabeça, revela a unidade do redil de Cristo”. (Nº 22. Constituição sobre a Igreja. Cap 3. O Episcopado – CVII)
3. Mais além de conteúdos específicos do documento que são considerados “polêmicos”, ou a possível abertura para algumas vias ministeriais que respondam mais adequadamente à situação tão urgente e particular da Amazônia, o que ao aparecer subjaz muitas das preocupações sobre o IL é a tensão existente entre a revelação do Espírito e as mudanças que isso pode trazer a partir do sentido da fé do próprio Povo de Deus, seu “sensus fidei” e alguns elementos da Doutrina que, pensado para a Amazônia, requerem mudanças reais à luz de um sincero discernimento sinodal.
No Concílio Vaticano II há uma afirmação que dá claras diretrizes nesse sentido, as quais nos podem ajudar a superar os temores e as tensões, e ao entrar com uma genuína atitude de discernimento à luz do Magistério:
“O Povo santo de Deus participa também da função profética de Cristo, difundindo o seu testemunho vivo, (…). A totalidade dos fiéis que receberam a unção do Santo (cf. 1Jo 2, 20; 27), não pode enganar-se na fé; e esta sua propriedade peculiar manifesta-se por meio do sentir sobrenatural da fé do povo todo, quando este, ‘desde os Bispos até o último dos leigos fiéis’ (22), manifesta consenso universal em matéria de fé e costumes” (Nº 12. Constituição sobre a Igreja. Cap 2. O Povo de Deus – CVII). Esse ponto é retomado com clareza pelo papa Francisco no Nº 5 da Constituição Apostólica “Episcopalis Communio”.
E nesse mesmo sentido, algumas linhas mais abaixo, no mesmo documento, afirma que o Espírito Santo não somente santifica e dirige o Povo Deus em sacramentos e ministérios, mas que:
“‘distribuindo a cada um os seus dons como lhe apraz’ (1 Cor. 12, 11), distribui também graças especiais entre os fiéis de todas as classes, as quais os tornam aptos e dispostos a tomar diversas obras e encargos, proveitosos para a renovação e cada vez mais ampla edificação da Igreja (…)” (Nº 12. Constituição sobre a Igreja. Cap 2. O Povo de Deus – CVII). Devemos caminhar sem medo do novo, a respeito de nossas fontes e nossas raízes, para que a presença de Deus no mundo, em suas aldeias e na Amazônia cresça mais forte, e a missão da Igreja pelo Reino seja fortalecida – Maurício López
No Sínodo Pan-Amazônico, existe uma tensão natural e necessária entre o inescapável campo pneumatológico (da revelação de Deus no sentido da fé – o sensus fidei – através do povo que é infalível quando acredita) e suas implicações em algumas diretrizes doutrinais.
Em um discernimento bem conduzido, um lado nunca tem a intenção de triunfar sobre o outro; de fato, não há lados opostos, porque se trata de buscar aquilo que mais leva ao projeto de Deus. Esse é o grande perigo com as posições que permanecem nos extremos ou em desqualificação, as quais não permitem o diálogo e não dão espaço para a novidade.
O que se trata, e é ao que nos sentimos convidados a fazer, é identificar o próprio Deus neste caminho progressivo de revelação estabelecido na chave da fidelidade ao Espírito, e que é, portanto, também um enriquecimento para o avanço permanente da disciplina doutrinal que deveria ser como o sábado para o homem, e não vice-versa. Devemos caminhar sem medo do novo, a respeito de nossas fontes e nossas raízes, para que a presença de Deus no mundo, em suas aldeias e na Amazônia cresça mais forte, e a missão da Igreja pelo Reino de Cristo seja fortalecida neste território.
Por: Maurício López — REPAM | Tradução: Wagner Fernandes de Azevedo
Notas [1] Nos processos de consulta da REPAM, fizeram parte formalmente da escuta para o Sínodo, aproximadamente 87 mil pessoas. Das quais 22 mil em assembleias, fóruns e rodas de conversas, e pelo menos outras 65 mil nos processos preparatórios nos nove países da Pan-Amazônia. 90% do total de bispos amazônicos ou seus vigários participaram. E também, as próprias Conferências Episcopais fizeram seu próprio processo de consulta em alguns casos.
Fonte: Instituto Humanitas Unisinos
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