PISTAS HOMILÉTICO-FRANCISCANAS
Liturgia da Palavra: Eclo 35,12-14.16-18; Sl 33 (34); 2Tm 4,6-8. 16-18; Lc 18,9-14.
Tema-mensagem: Humildade caminho por excelência para o encontro, o amor e a oração
Sentimento: Humildade
Gesto: Bater no peito no Ato penitencial
Introdução
Depois de ter-nos dito e ensinado que devemos rezar chamando sempre seu Pai de “Nosso Pai” (Lc 11,1-2), hoje, Jesus vem ao nosso encontro para nos ensinar e fortalecer na virtude essencial da oração, tão essencial que sem ela não existe oração: a santa humildade.
1. O grito do pobre atravessa as nuvens (Eclo 35,12-14.16-18)
Quem nos introduz, já de longe, ao mistério deste domingo, é um pequeno trecho do Eclesiástico. O autor tem como objetivo principal despertar em seus leitores – os eleitos de Deus – um profundo sentimento de temor e de confiança no Senhor da Aliança. Diferentemente dos outros povos que tinham deuses vingativos, justiceiros e impiedosos, o Deus, o Senhor do Povo da Aliança, é um juiz que não faz discriminação de pessoas. Ele não é parcial, em prejuízo do pobre, mas escuta, sim, as súplicas dos oprimidos.
Na verdade, neste anúncio está o prenúncio da Boa Nova de Jesus: que Deus é Pai, nosso Pai e nós, portanto seus filhos queridos. A oração do autor se apoia na fé do Deus da Aliança. Um Deus que jamais despreza a súplica do órfão, nem da viúva quando desabafa suas mágoas. Por isso, aquele que responde ao Senhor com fidelidade e humildade, será sempre bem acolhido e suas súplicas subirão até as nuvens. E enquanto não for atendido não terá repouso e não descansará até que o Altíssimo intervenha, faça justiça aos justos e execute o julgamento.
2. Buscar sempre a justiça de Deus jamais a nossa
O ensinamento de Jesus acerca da humildade vem através da parábola do “fariseu e do publicano que subiram ao templo para orar”.
2.1. Dois homens antagônicos (Lc 18,9-14)
A parábola tem um endereço muito certo: “alguns que se vangloriavam como se fossem justos e desprezavam os demais”. Mais que uma comparação, a parábola é a proposição de um exemplo: o que se há de evitar e o que se há de imitar, quando realmente queremos rezar, isto é, quando queremos acolher Deus em nossos corações e em nossa vida: evitar a soberba e imbuir-nos de humildade. A parábola é como uma flecha zunindo. Passa rente. Seu soar, porém, provoca o ouvinte não apenas a pensar, mas também, à advertência, à admoestação acerca de seus convencimentos, seguranças, acerca de sua justiça e de seu desprezo dos outros, enfim de sua soberba. Tanto o fariseu como o publicano, sobem ao templo para orar. Mas a oração de um e de outro nasce de fontes bem diferentes. Se no fariseu a oração brota da soberba, no publicano nasce da humildade. Se no primeiro a oração é para autojustificar-se diante de Deus, no segundo ela nasce da necessidade de receber o perdão de Deus, perdão que torna justo o pecador. Só este caminho – o da humildade – é capaz de acolher o amor e levar as pessoas à doçura do encontro, sentido primeiro, único e último da oração.
A soberba é, certamente, o vício que está na raiz de todos os vícios como a humildade está na raiz de todas as virtudes. Acerca dessa realidade assim se expressa o mestre frei Egídio, companheiro de São Francisco: “Todos os perigos e todas as grandes quedas que aconteceram no mundo, não aconteceram senão através da elevação da cabeça, assim como se manifesta na queda daquele que foi criado no Céu, e em Adão e no fariseu do Evangelho e em muitos outros. E todos os grandes bens que aconteceram, foram feitos pela inclinação da cabeça, como se manifesta na Bem-aventurada Virgem, no publicano, no santo ladrão e em muitos outros” (DE IV).
Enquanto a primeira poderia ser considerada como a resposta do homem da Lei, do Antigo Testamento, a segunda expressa a resposta do homem novo, nascido da graça da doçura do encontro com Jesus, princípio da Nova Aliança.
2.2. Os dois modos de rezar
Quem seriam estes dois homens? O fato do texto não identificá-los significa que, antes de dois indivíduos o evangelista quer nos revelar dois modos de orientar e conduzir nossa resposta Àquele que muito nos amou. Em outras palavras, cada um de nós pode ser fariseu e publicano ao mesmo tempo. Por isso, além das palavras com as quais os dois rezam importa que prestemos atenção no modo como o fazem.
2.2.1. O fariseu
O fariseu, tomado pelo fogo da vaidade e pelo impulso da presunção, rezava ofendendo a Deus, aos demais homens e ao publicano.
No fundo, o fariseu não rezava, não conversava com Deus, face a face, mas “consigo mesmo”. Sua oração é ego-centrada, autoreferencial. Uma idolatria de si mesmo. Agradece, sim a Deus, mas seu agradecimento está cheio de si, de autossuficiência, de autojustificação, de exibicionismo. Ele se autocompraz com o espetáculo de sua justiça e piedade. Nele, não se encontra a abertura, o espaço, o vazio para receber. Está tão cheio de si que não tem nada a rogar, nada a pedir, nenhum pecado a confessar. Ele não consegue e nem pensa dizer, todos os dias, como reza o original latino: “despacha as nossas dívidas, assim como nós despachamos as dívidas de nossos devedores”. Ele não deve nada a Deus. Acha até, pelo contrário, que Deus é seu devedor, pois que sempre cumpriu direitinho suas leis: nunca deixou de pagar o dízimo, de fazer suas orações, suas “caridades”, seus jejuns, etc. Por isso, “rezava de pé”.
Além de ofender a Deus, o fariseu também insulta os demais homens porque dá graças a Deus por não ser como eles, “que são ladrões, malfeitores, adúlteros”. Segundo Agostinho a presunção dele é tão grande que ele considera todos os homens como pecadores, exceto ele. Todos os homens estão corrompidos. Ele é o único probo, íntegro, reto, puro, justo. São Gregório, por sua vez, dá alguns sinais que nos ajudam a perceber quando o homem é tomado pelo inchamento da mente que é a soberba: quando ele crê que o bem nasce exclusivamente dele mesmo; quando atribui os bens aos próprios méritos e não à graça de Deus; quando disso se autoelogia e se gaba; quando, com esses bens, quer aparecer diante dos outros, diante de Deus e diante de si mesmo como se fossem seus.
Finalmente, além de ofender a Deus e aos ausentes, o fariseu ofendia também o próximo, o publicano. Os pensamentos dele “eu sou único!”, “este publicano é como os demais!” eram como se metesse a mão na ferida aberta do pobre publicano. Ora, imaginemos o quanto não devia sentir-se rebaixado o publicano escutando a prece deste fariseu. Há uma máxima que diz: não ponha a mão na ferida de alguém, a não ser para curá-la. O fariseu, ao contrário, põe a mão na ferida do publicano não para ajudá-lo a se salvar, mas para afundá-lo ainda mais na sua miséria. O soberbo, em sua petulância, é um caluniador, e é, ao mesmo tempo, um menosprezador do seu próximo.
2.2.2. O publicano
Outro, bem outro, é o modo de se aproximar de Deus por parte do publicano. Movido pela humildade e pela contrição do coração, aproxima-se com verdadeira piedade. Ele, que ficara preso às coisas da terra, amando mais aos bens deste mundo, considerando-se indigno nem sequer ousa olhar para o alto. Ao contrário, bate no peito, não apenas porque do seu coração saíram tantos maus pensamentos e maldades, mas, também, para tentar acordá-lo da letargia em que os vícios o mergulharam. Em vez de se louvar diante de Deus, se penitencia e roga a misericórdia: “sê propício a mim, pecador”. Não se irrita com a presunção do fariseu. Uma vez que sua ferida ficou exposta aproveita a ocasião para apresentá-la ao divino Médico, pedindo-lhe a cura, a salvação e a restituição da saúde de sua alma.
Fazendo eco à humilde oração deste verdadeiro fiel, assim canta o salmista de hoje: “O pobre clama a Deus e Este o escuta! [...] Minha alma se gloria no Senhor; que ouçam os humildes e se alegram!” O mesmo sentimento encontramos no Magnificat de Nossa Senhora: “A minha alma engrandece o Senhor... porque olhou para a humildade de sua serva...”. Também a primeira leitura de hoje nos conduz para dentro do mistério do nosso Deus que não aceita as orações e as oferendas dos soberbos – que parecem querer suborná-lo – mas que acolhe de preferência a oração dos humilhados e dos fracos, a saber, do pobre, do órfão, da viúva. Estamos, aqui, diante dos anaviîms, os pobres, os humildes de Deus; dos anieh rouah, os “humilhados do espírito” cuja presença perpassa todas as páginas da Sagrada Escritura. O sopro da liberdade jovial de Deus, o Espírito, vem ao encontro dos humilhados como misericórdia, ou seja, como amor fiel, entranhado, visceral, matricial, que se con-descende e se com-padece e, assim, liberta. Deus se mostra receptivo aos humilhados, tratando-os com ternura e compaixão. O humilde, o humilhado, é chamado, em grego, “tapeinós” (pobre). É o “pequenino” que, curado de seu ressentimento, vive concentrado na finitude da vida, contentemente, alegremente, “doado à tarefa do aqui e agora” (HH). É para estes que o olhar de Deus se volta, de modo a se comprazer.
A parábola, diz-nos Agostinho, mostra como o Juiz deixa ir embora o acusador soberbo sem justificação e absolve, isto é, declara justo, o réu confesso, isto é, o pecador que se humilhou com a sua confissão. O primeiro tinha se justificado a si mesmo. Por isso, não podia ser justificado por Deus. O segundo, confessou sua injustiça, e, por isso, pôde ser tornado justo por Deus. São João Crisóstomo, por sua vez, diz que nesta parábola aparecem dois carros com dois condutores. Enquanto o carro da justiça é guiado pela soberba, o carro do pecado é guiado pela humildade. A soberba põe a perder a justiça. A humildade supera o peso do pecado, e reconduz o pecador ao lugar da salvação.
2.3. Soberba caminho para o inferno humildade caminho para o Céu
Jesus termina a parábola dizendo: “todo o homem que se eleva será rebaixado, mas quem se rebaixa será elevado”. Nós costumamos interpretar este dito do Senhor na dinâmica do comércio, como se à humilhação seguisse o merecimento da exaltação e como se à exaltação seguisse o mal da humilhação. Mas, e talvez, possamos interpretar o dito da seguinte maneira: a humilhação da humildade é, ela própria, elevação e enobrecimento enquanto que a elevação da soberba é, ela própria, degradação e envilecimento. É que o humilde, pela própria humildade, mostra grandeza e nobreza, enquanto o soberbo, pela própria soberba, mostra baixeza e vileza. Trata-se do mesmo princípio que rege a relação da Ressurreição com a Cruz. Cristo não precisou da Ressurreição para provar sua glória porque na própria Cruz Ele tem sua grandeza, sua glória, sua alegria. A humildade, com efeito, dá à alma humana uma magnanimidade que a eleva para a semelhança de Deus, a humildade em Pessoa. Por isso, humildade é grandeza. Só os grandes, sábios e nobres podem ser humildes e só os humildes são os verdadeiramente grandes, sábios e nobres. E o são porque eles dominam as tristezas, suportam as tribulações com fortaleza, desprezam as vaidades terrenas e apreciam as verdades celestes. Enfim, grandes são os humildes porque, junto com o Humilde dos humildes – Jesus Cristo crucificado – carregam e guardam para si os pecados do mundo. A soberba não é grandeza de alma verdadeira porque o homem se rebaixa tornando-se escravo de suas próprias ilusões. Confundir a grandeza e a nobreza de alma com a soberba é como confundir a robustez do corpo sadio, diz São Basílio, com a obesidade de um corpo hidrópico.
Nos Fioretti de São Francisco, se narra um episódio muito gracioso. Frei Masseo ouvindo falar da grandeza e da beleza da humildade, jurou lutar por conquistá-la. Nesta luta, ele desesperou, pois entendeu que a humildade não poderia nunca ser uma conquista de seu eu. Então, no auge do seu desespero, apareceu-lhe o Cristo. Este o perguntou-lhe o que ele daria para receber a humildade. Masseo respondeu: as meninas dos meus olhos. E Cristo, então, graciosamente, disse-lhe como num gracejo: “Fica com as meninas dos seus olhos, e recebe de mim a humildade de graça”. A partir de então, imitando o arrulho de uma pomba, passou a orar sempre na doçura desta graça.
3. Paulo e sua oferta em sacrifício (2 Tm 4,6-8.17-18)
A segunda leitura deste Domingo é tirada da Carta de São Paulo a seu inseparável e fiel companheiro em suas viagens apostólicas entre os gentios: Timóteo. Paulo se compreendia a si mesmo como alguém que estava a caminho, apressadamente a caminho. Ele corria acossado por uma pressa escatológica. O seu correr era um correr de um “apóstolo” (enviado). Sua viagem se fazia no envio de Cristo. Ele era alguém que estava incumbido de levar a Boa Nova a toda a terra.
No trecho de hoje, Paulo relata o seu fim: “Quanto a mim, já estou para ser derramado em sacrifício, e o momento da minha morte está iminente. Combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a fé...” (2Tm 4, 6-8). A passagem é conhecida, geralmente, como “o Testamento de Paulo”. E a quota mais significativa de sua herança é de que a vida de um cristão vem marcada pela necessidade de um combate, uma luta até ser derramado em sacrifício, como numa libação. É neste combate que se decide se o discípulo de Cristo se torna o que ele, por graça, já é, ou não. Para isso, o cristão tem que correr o curso da vida, com todas as suas vicissitudes e peripécias, com todos os seus reveses, passando, inclusive, pela morte, com Cristo e como Cristo.
Na segunda parte desta leitura, tomado de emoção e de arrebatamento, diante do mistério que o acompanhou desde sua conversão até esse momento - o fim – vai exclamando – como que saboreando - seguidamente o nome do seu “Senhor”: “O Senhor, justo juiz” [...]; “Mas, o Senhor esteve ao meu lado e me deu forças” [...]; “O Senhor me libertará...” (2Tm 4,8.17.18). E, como o arauto de uma grande luta, encarregado de anunciar a vitória final, exclama, alto e bom som: ”A Ele a glória, pelos séculos dos séculos! Amém”!
Conclusão
A humildade é caminho claro de ascensão da alma para Deus e de comunhão com Ele, com os homens e com todas as criaturas > Céu (Cf. LS 66). A soberba, ao contrário, é caminho de rebaixamento para os abismos escuros da miséria do isolamento de si e em si mesmo > Inferno. Por isso, diz o salmista: a melhor oração não são nossos sacrifícios, mas, antes, um espírito contrito, um coração arrependido e humilhado. Eis o que o Senhor, jamais haverá de desprezar (Sl 50,19).
Foi esta virtude que elevou o humilíssimo Francisco para o alto e a fixar sua morada em Deus; foi esta virtude que o levou, pela compaixão, a transformar-se em Cristo e pela condescendência a inclinar-se reverentemente para o próximo, principalmente, para o leproso e para todas as demais criaturas. Enfim foi esta virtude que o levou para o estado da inocência original (Cf. LM 8,1 e LS 66).
Fraternalmente,
Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini.
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